O acesso à praia parecia-se muito com uma ponte de concreto destruída. Para finalmente colocar os pés na areia, era preciso pular de um bloco grande até o outro, depois até um menorzinho e ainda atravessar uma pequena lagoa cheia dessas pedrinhas que se enfiam nas nossas solas do pé como se fossem cacos de vidro.
Lá estava eu, pisando naquelas pedras sem me preocupar com o estrago que elas fariam no meu pé pequeno e magrinho. Lá estava eu, depois de uma caminhada de, no mínimo, duas horas. Eu asmática. Eu preguiçosa. Eu doida por sol. Eu doida por praia. Eu doida por um mar e uma caipirinha de limão bem gelada. Eu que passara os últimos dias pensando que, apesar da quantidade exorbitante de gente estranha com quem topei na vida, ainda queria conhecer pelo menos 1 milhão de outras pessoas. Eu nova, sem aquela mochila pesada que entortava minhas costas e roubava minhas forças, nas costas. Eu livre para aproveitar meus dias como bem quisesse. Eu, Aline Vieira. Eu e o mundo.
Entre galhos e pedras, mosquitos e formigas, subidas e descidas, havia alcançado o objetivo principal do meu primeiro dia de férias: completar uma trilha. Sempre gostei de trilhas, mas alguns eventos durante a minha vida universitária, principalmente, colaboraram para que eu desenvolvesse certo trauma de andar no meio da mata.
Uma vez, quando eu ainda estava no segundo ano da faculdade de jornalismo, tivemos que fazer uma reportagem sobre Paranapiacaba, uma vilinha turística em Santo André. Eu e meus amigos resolvemos fazer a famosa Trilha do Mirante, que sai de lá. São 60 minutos de caminhada até o topo e, quando você chega lá em cima, você pode ver Santos. Que vista! Eu adorei o caminho, mas a oscilação de temperatura na trilha era grande demais – hora calor, hora vento, hora frio, e eu voltei para casa com uma das piores pneumonias que eu já tive na vida (e olha que já tive muitas!).
Desta vez foi diferente. A começar pelo lugar. Ilha Grande, onde fiquei 5 dias em contato intenso com a natureza, fica no Rio de Janeiro, e toda vez que vou ao Rio de Janeiro meu coração se vê todo quentinho, como se ali fosse o meu lugar. A trilha que saía de Abrãaozinho para a Praia de Palmas parecia abafada pela floresta. Eu me sentia perseguida por uma só temperatura – o calor. E eu já disse muitas vezes: eu amo o calor.
O sol foi embora assim que cheguei na praia. Naquele momento, eu não liguei muito, afinal, ali éramos eu e o mundo…
…E que mundo!
Do começo da praia, vi a água verdinha dançando pra lá e pra cá. As ondas quebrando. O vento leve soprando o cabelo. Um píer lá no fim e ele, o Grande.
O Grande vestia bermuda vermelha e dispensava a camiseta – também, quem aguentava usar roupa naquele calor? Tinha uns 12 anos, no máximo. Enquanto os outros garotos empinavam pipa, brincavam de lutinha e de futebol, o Grande focava em uma única missão: pescar. Jogava e puxava de volta a vara de pescar várias vezes, sem sucesso.
Estendi minha canga na areia, pedi uma garrafa de cerveja (porque depois de ver o preço da caipirinha no cardápio desisti na hora) e fiquei ali umas duas horas, só de olho no que o Grande fazia. Em nenhum momento ele se aproximou dos outros garotos – nem os outros garotos dele. Parecia uma situação já resolvida: ‘nós não gostamos desse cara, ele não suporta a gente’.
A falta de sol começava a me incomodar. Demorei para me dar conta que o único lugar da praia onde o sol apareceu foi no mesmo píer em que o Grande estava. Assim que percebi que não adiantava esperar o sol chegar até a minha canga, juntei minhas coisas rapidamente e fui para lá.
O Grande pouco se importou com a minha presença – continuava na missão de pegar peixes. Um casal que pescava por hobbie também sentou no píer e ficou algum tempo esperando a varinha chacoalhar. Isca aqui, isca ali e nada. Desistência. O Grande deu mais um tempo, jogou a linha mais longe, esperou alguns minutos e – PIMBA – começou a puxar o peixe que caiu em sua armadilha com uma concentração ainda mais impressionante, sem falar uma só palavra e sem soltar uma só comemoração.
Colocou o peixe no caminho de madeira do píer, pegou uma faca e começou a dar facadas no de leve no animal. Fiquei incomodada. Tinha certeza que o Grande comemoraria a vitória de pescar o bicho de forma rápida e logo devolveria ele ao mar – ou que, no mínimo, levaria o peixe para casa para comer. O casal ao meu lado também ficou incomodado e foi embora.
O ‘assassinato’ continuava da forma mais fria possível. O Grande começou a esfaquear com ainda menos dó. Tirou os olhos, espetou o corpo todo e fez o bicho sangrar por todo lado. Eu não entendi o motivo daquilo – talvez porque realmente não fazia sentido só pescar um peixe para esfaqueá-lo, mas tentei entender se o garoto solitário tinha alguma motivação extra.
O Grande me contou que, na verdade, morava em Campo Grande e que, assim do nada, a mãe dele o enviava para Ilha Grande para ficar com o pai, pescador. Perguntei se essas idas e vindas não atrapalhavam na escola e ele só chacoalhou os ombros como se aquilo pouco importasse perto de todo o resto.
O garoto era o mais arisco que já tinha conhecido. Passamos quase uma hora sem conversar depois da revelação incomoda.
O sol caía cada vez mais e eu resolvi pegar um barco para ir embora – afinal, duas trilhas num só dia ainda não faziam parte do meu mundo ideal. O barqueiro veio do canto da praia, onde eu estava antes, e cumprimentou o garoto.
– Fala, Grande!
Ele só olhou rapidamente, sem emoção. Pouco se importando, começou a cortar o peixe todo esfaqueado em pedaços.
O barqueiro também ficou incomodado com o pouco interesse. O problema, afinal, não deveria ser comigo.
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