A primeira coisa que pensei ao acordar no último dia da minha licença do trabalho foi que eu precisava muito ir na feira. Não tinha nada, absolutamente nada, para comer em casa – e, para falar a verdade, eu nem podia comer tanta coisa assim. Por isso, meu segundo pensamento foi: “Já devo estar com cara de brócolis”. Por que? Eu explico em breve.
Este ano pareceu um teste divino. Não é exagero nenhum dizer que eu passei praticamente meu 2017 inteiro pulando de médico em médico. Dores nas costas e nas costelas, tontura, indigestão… Cada hora um diagnóstico diferente. Para a otorrino, eu estava com labirintite causada por estresse. Para o plantonista do hospital perto de casa, eu estava com um negócio chamado neurite intercostal – até tomei aquelas injeções doloridas na bunda para ver se passava. Mas nada. No ortopedista, o doutor me disse que eu tinha o trapézio de uma senhora de 60 anos e que iria precisar de fisioterapia e acupuntura.
– Pô, Doutor! Eu queria mesmo é estar aposentada igual uma senhora de 60 anos, sabe?, eu disse, rindo, mas sabendo que a situação não estava muito favorável pra mim.
Eu preciso ser sincera: não acreditei em nada o que os médicos disseram e continuei louca atrás do que diabos estava acontecendo com o meu corpo. Até para a psicóloga eu corri – e ela parecia ser a única que me deu um diagnóstico mais aceitável.
– É normal o seu corpo sentir fisicamente o que as suas emoções andam falando. A dor que está aí dentro está se manifestando no seu corpo.
Fui em algumas outras sessões de terapia e até parecia estar resolvendo meus problemas emocionais. Mas ainda não estava satisfeita – e nem meu corpo. Cada hora a dor se manifestava de uma forma diferente. Eu, virginiana, curiosa e maluca, comecei a ficar alarmada.
Foi logo depois do meu aniversário de 30 anos que descobri uma coisa maravilhosa chamada check-up geral dado de graça pela firma. Marquei o meu para a semana seguinte, às 7h15. Quinze minutos depois de chegar no lugar, eu já sabia qual era o meu problema: eu tinha múltiplas pedras na vesícula – e iria ter que tirar a bicha em cirurgia.
Acordei grogue do procedimento e não conseguia nem olhar para comida, mas lá estava ela, a famigerada sopa de cenoura e brócolis – e era essa coisa que eu veria muitas vezes pelos próximos 15 dias.
Dizem que depois de uma cirurgia de vesícula você precisa levar uma dieta balanceada e sem gorduras. Vou contar uma novidade para você que não me conhece pessoalmente e só me lê aqui: eu sou a verdadeira gordura. Eu me enfio na batata frita e na picanha. Eu acordo tomando coca-cola. Eu sou a monstra das balinhas e dos chicletinhos. Chocolates fazem meu dia. Coxinhas alegram minha vida. Pudins transformam a minha existência. Sendo assim, como é que eu teria comidas não gordurosas na minha casa para o pós-operatório?
Pulei da cama, coloquei qualquer roupa amassada que estava jogada no quarto e #PartiuFeira e dieta não gordurosa.
A primeira parada foi na barraca de brócolis, que pode ver: sempre é a mesma que tem aquela outra coisa chamada cenoura. Para piorar a situação, o feirante empreendedor maneiro me gritou um ‘quatro bandejas por cinco reais’. Obrigada, moço, por desgraçar a minha vida de pessoa que ama gordurosa. Comprei meu brócolis, minha cenoura, meu couve-flor e até uns repolhos. Botei tudo dentro da sacola e não quis nem olhar.
Tentei lembrar o que mais precisava comprar. No automático, parei em frente a barraca do pastel. Estava quase pedindo quando:
– NÃO, SUA MALUCA! PASTEL NÃO!, gritou a minha recém-adquirida consciência.
Me obriguei então a ir para a barraca do peixe, que era onde eu deveria estar. Lá, percebi que um novo rapaz tinha começado a trabalhar ali. Ele estava atendendo uma velhinha indecisa, mas quando viu que eu estava muito mais decidida que ela, resolveu pegar o meu pedido primeiro.
– Oi, será que você pode me ver 15 filés de pescada, por favor?
Ele foi cortar. Eu virei para olhar para a senhorinha do meu lado. Eu amo senhorinhas.
Ela era minúscula. Minúscula e fofa e encurvadinha. Vestia uma calça legging confortável e um desses casaquinhos de vó que parecem muito quentinhos. Segurava a carteira numa mão e tinha a outra no carrinho de alumínio que levava as compras. O cabelo curtinho e branco. As ruguinhas ocupando todos os pedacinhos do rosto. A voz fraquinha e delicada.
– Ai, peixe é tão gostoso. Fica tão bom fritinho. Mas eu não posso comer. Eu vou ter que fazer no forno com tomate. Você já fez? Fica uma delícia também, mas frito é tão mais gostoso. Pena que eu não posso. Eu tenho problemas de intestino.
Eu mal tive tempo de pensar muito. Mas o que eu queria fazer mesmo era dar uma abraço gostosinho nessa velhinha fofa que estava passando por algo tão parecido comigo.
– Ai, eu também não posso comer nada frito, eu disse.
O motivo de pessoas que fizeram cirurgia da vesícula não poderem comer gordura é justamente esse: sem a vesícula para filtrar a gordura que passa pelo fígado, a única certeza de uma pessoa sem esse órgão é que, se ela se alimentar de muita coisa ‘’que não pode’’, ela vai ter uma bela de uma diarreia. Eu estava me controlando nas frituras para não ser uma dessas pessoas que passa dias no banheiro por causa de, sei lá, um pedaço de maminha.
A verdade mesmo é que a velhinha nem pareceu ligar para o que eu disse:
– Eu já fui em oito gastros, mas ninguém descobre qual é o meu problema. Eu tenho problema no intestino, mas ninguém sabe o que é. Daí eu tomo um remédio que aqui é muito caro, daí eu compro nos Estados Unidos. Ele é muito bom. Recomendo, viu? Na verdade, quem compra é minha filha.
– Ah, é? Dá uma regulada?, perguntei.
– Nossa, é muito bom. Na verdade quem compra é a chefe da minha filha. Custa 30 dólares. Serve para um mês. Eu já comprei alguns esse ano. Queria ter comprado mais, mas minha filha fica com vergonha de pedir para a chefe dela trazer um remédio de intestino, né? Eu falo para ela não ter vergonha, mas não adianta, disse, fazendo uma cara de contrariada.
Meu peixe estava embrulhado e na sacola. Eu percebi que, por aquela senhorinha, ela continuaria com esse assunto por mais umas três horas, ali mesmo, no meio da feira. E eu queria continuar conversando. Mesmo se só ela falasse pela maior parte do tempo. Mesmo que demorasse mais algumas horas até ela me deixar contar que eu tinha tirado a vesícula e que estava apavorada com os pontos absorvíveis, que estavam com pontas para fora da minha barriga. Mesmo que eu só conseguisse contar pra ela depois de um século que eu passava dia e noite pensando se eu iria poder comer um chocolatinho de novo na vida. Mesmo que eu não soubesse quando ia poder contar pra ela que talvez eu não conseguisse mais tomar três longnecks de Budweiser.
– Aqui a maquininha, deu 58, disse o moço da barraca.
Peguei meu cartão na bolsa para pagar e ela continuou dizendo algo que eu não prestei muita atenção – só porque estava digitando a senha.
– Ai, você está ocupada. Deixa eu parar de falar. Não quero te incomodar, disse, se despedindo.
O que eu queria dizer era: ‘Calma! Volta, senhorinha! Eu estou de licença e tenho o dia todo para conversar. Quer ir lá em casa tomar um suco? Eu queria falar do meu coco também. Não tenho problema no intestino, mas adoro falar sobre problemas de intestino – dentro de casa. Tenho dois gatos, que vão amar a senhora. Eu tô assistindo ‘Encontro com Fátima’. O tema é racismo. Quer ver comigo?’
O que eu disse foi apenas: ‘Tchau, boa sorte e não abusa dos remédios, viu?’
Ela foi embora. Eu peguei o comprovante de pagamento da mão do rapaz da feira e, voltando pra casa, me senti bizarramente triste por não ter virado amiga da senhorinha que abriu o coração sobre o intestino na feira. Nem sei por qual motivo. Talvez seja hora de levar esse assunto para a minha terapeuta.
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