O amanhecer alaranjado – e perfeito – invadia o quarto pela janela. Sensível demais à luminosidade, abri os olhos quase que instantaneamente. Eu adoro amanheceres bonitos, mas acordar àquela hora, naquele dia, me deixou chateada. Aquele era um dos meus últimos momentos de folga e eu sabia que não conseguiria voltar a dormir tão cedo.
Procurei o celular entre os travesseiros – eu adorava deixá-lo na cama agora, que havia tirado praticamente todas as notificações e conseguia “calar” os intrusos durante boa parte do meu dia. Vi que ainda nem era 7 da manhã.
Fucei em todos os aplicativos que tinha, na esperança de o marasmo das redes sociais me fazer adormecer novamente – isso sempre funcionava em outros momentos, mas não deu certo desta vez. Atentei para o dia: 31 de dezembro de 2017. Travei.
“Então é finalmente dia 31 de dezembro”, suspirei. O último dia de um ano terrível.
Mesmo tendo acordado há pouquíssimos minutos, já estava dividida entre dois sentimentos. Eram eles:
1) Felicidade: já que aquele era, teoricamente, o badalo final da fase mais triste e menos inspiradora da minha vida – eu deveria estar dando pulos de alegria porque esse era, finalmente, o fechamento de um ciclo que eu gostaria de esquecer.
2) Desespero: era a primeira virada de ano sem a minha mãe, que enfeitava qualquer festa de revéillon com um sorriso e uma alegria que eu nunca vi em ninguém – nem na minha família, nem em ninguém no mundo.
Os pensamentos se aceleraram dentro de mim. O coração disparou e tive que focar naquela técnica de respiração que vi na internet para pessoas que têm crises de pânico.
Enquanto respirava lentamente e profundamente, fiquei pensando em como seria incrível se, a cada virada de ano, fossemos magicamente invadidos apenas por energias boas. Poderia ser assim: o relógio da contagem regressiva da Globo dava meia-noite, os fogos explodiam no céu e, do nada, um carregador gigante em forma de coração surgiria na frente de cada pessoa. Esse item tecnológico ~da paz seria responsável por carregar cada pessoa do mundo apenas com energias boas. Ele apagaria todas as mágoas, as brigas e as dores. Todas as picuinhas e as fofocas. Tiraria das pessoas sentimentos de solidão e de tristeza.
A essa hora, meu coração já tinha desacelerado. Mas eu ainda desejava que as horas do relógio congelassem. Eu não queria que o ponteiro avançasse nem mais um segundo. Eu sentia muita raiva, e sei lá por qual motivo, muito medo também.
Seria mais um dia em que o mundo todo estaria comemorando – e eu lutando para não sentir inveja.
A verdade é que o Natal já havia sido horroroso. Eu até tentei! Havia combinado de estar na casa do meu irmão para uma espécie de ceia às 20h, mas cheguei quase 22h. Antes de sair do meu apartamento, tive uma crise de ansiedade das bravas e quase não consegui deixar o quarto.
Tentei expulsar a lembrança ruim do primeiro Natal sem a minha mãe: levantei da cama, joguei Splatoon no Switch, li alguns trechos de livros que estavam na fila no meu Kindle e tentei assistir alguns episódios de ‘Scandal’ na Netflix durante a tarde. As horas até que passaram rápido.
Tentei não dar muita atenção para o negativismo que rondava o meu dia, mas mesmo assim me recusei a trocar de roupa para celebrar a virada. “Essa coisa de cores da sorte são uma grande bobagem”, pensei.
A TV exibia o réveillon na Paulista. O relógio não congelou, como eu gostaria. Os fogos começaram a subir. Os barulhos de garrafas de champanhe sendo estouradas se espalhavam por todo o bairro. Famílias inteiras gritavam nas varandas de seus apartamentos e de suas casas. Os desejos de ‘Feliz Ano Novo’ estavam por toda parte.
Fiquei paralisada olhando para os fogos por um tempo. Até que eu olhei para o meu pai e o vi chorar. Aquela cara do meu pai era a mesma que eu o vi fazendo tantas vezes desde a partida da minha mãe. Achei que fosse desmaiar. Percebi uma coisa nos últimos meses: a única coisa que me destrói de verdade é ver as pessoas que eu amo chorando. As coisas rodavam cada vez mais rápido, mas eu lutei pra ficar de pé.
Fechei os olhos bem forte pra não cair em lágrimas. Gritei internamente que deveria ser forte. Um grito tão alto que, por um momento, me senti ensurdecida. Perdida no meio do meu próprio grito, ouvi aquela voz inconfundível. Era a voz da minha mãe. Abri os olhos e olhei para o céu. Os fogos continuavam explodindo. Ouvi de novo a voz dela. Em silêncio, abaixei a cabeça. E aí veio o resto. Veio o ‘Vai na fé, vai na coragem, vai com o coração aberto’.
Não sei no que vocês acreditam, mas eu fui dormir e acordei no 1º de janeiro certa de que aquele carregador fictício que eu desejava havia sido usado no meu corpo. Eu levantei da cama com um desejo: fazer algo por mim. “Vou andar de skate na Paulista aberta”, decidi. Se era pra começar um ano novo indo com tudo e com o coração aberto, eu precisava fazer algo que me deixasse muito feliz – e que eu não fazia há um tempo.
Estava calor e um pouco abafado, mas o ventinho no cabelo batia a cada nova remada que eu dava. Fui do Paraíso ao Trianon em poucos minutos. A vontade de beber uma cerveja gelada só aumentava – mas era 1º de janeiro e nenhum dos bares que normalmente ficam lotados de gente estava aberto. Encontrei uma vendinha perto da Brigadeiro. Eu conhecia bem aquele lugar: ficava perto de uma pastelaria de um vovôzinho japonês que eu sempre ia aos domingos. Abri a geladeira e tinha muita opção de escolha. Recém-operada da vesícula, resolvi que seria mais seguro beber uma Heineken. Paguei ao caixa e resolvi sentar na calçada enquanto tentava me refrescar. Conversava com o meu namorado sobre os desejos para 2018 quando ouvi um barulho atrás de mim.
Assim que olhei para trás, vi um homem de uns 40 anos, sem camisa e com tatuagens desbotadas espalhadas pelo peito e pelo braço. A barba e o cabelo estavam enormes, mas os olhos, claros, brilhavam de um jeito diferente. Ele deixou o carrinho com papelões que carregava de lado e abaixou para usar um daqueles orelhões menores.
Discou o número uma vez e nada. Discou de novo e começou a ficar inquieto.
– “Tô ligando lá na pensão no Paraná, mas ninguém atende”, disse. Não sei se falava comigo, exatamente, mas me intrometi mesmo assim.
– “Tá ligando pra desejar ‘Feliz Ano Novo’, né, cara?”, perguntei, amigavelmente.
Sem olhar diretamente para mim, ele disse que sim. Comentou que tinha 6 filhos – cinco homens e uma mulher – que não via há um tempo e que estava ligando a cobrar para o lugar onde eles moram com a mãe para poder dar notícias. Já estava em São Paulo há alguns anos e raramente conseguia falar com as crias e com a esposa.
Decepcionado com a falta de resposta, o catador de papelões da Paulista deu ‘tchau’, desejou um ano novo incrível e voltou a trabalhar. Puxou rapidamente seu carrinho e desapareceu entre as poucas pessoas que estavam na rua naquele 1º de janeiro.
Eu já havia terminado a minha cerveja e comprei a segunda. Sentei no mesmo lugar e fiquei observando o movimento. O orelhão tocou. Eu tinha certeza que aquela ligação era da família do catador de papelões. Na hora, me senti uma verdadeira participante de BBB quando o Big Fone toca. Sem pensar, corri para atender a ligação. Cheguei tarde demais. A pessoa do outro lado já havia desligado.