A preocupação estampava cada centímetro de seu rosto. A voz doce, mas ao mesmo tempo urgente, ecoou junto com o toc toc do salto alto no assoalho de madeira enquanto ela cruzava o corredor em minha direção.
– Você está travada? Está doendo muito? – perguntou.
Meu primeiro reflexo foi responder que não. Ora, eu não estava tão mal! Mas assim que ouvi a negativa saindo pela minha boca, percebi que, talvez, não tivesse entendido a camada de sutileza que envolvia aquele questionamento.
– Quer dizer… – eu gaguejei, numa tentativa falha de me corrigir.
Ela então, com aquele tom angelical que, de alguma forma, me fazia sentir segura, tomou o controle da situação:
– Pode ficar tranquila que a gente vai resolver isso!
Me conduziu para uma salinha pequena e simples, com luz baixa, uma maca coberta por lençóis brancos e alguns mini-potes decorando uma rack. Afirmou que, naquele primeiro encontro, usaria uma variedade de técnicas a fim de aliviar a tensão muscular que já me assombrava há, pasmem, mais de dois anos.
Pisquei e as micro-agulhas estavam por todo o meu corpo. Ela pediu que eu relaxasse e apagou as luzes. Saiu de forma mansa. Desconfio até ter tirado os sapatos para que seus passos barulhentos não interrompessem o que quer que fosse que eu estava fazendo.
Eu então fechei os olhos no intuito de meditar. Na escuridão da minha própria mente, fui levada para aquele dia, no chá de bebê de uma prima. O coração acelerou, como durante os inúmeros ataques de pânico que sofri naquela época.
As bexigas brancas e cor-de-rosa ocupavam a garagem espaçosa da casa onde passamos boa parte da infância correndo, meus primos e eu. Placas de letras de isopor com glitter formavam a frase “Bem-vinda, Ruth”.
Não havia feito nem um ano que mamãe havia partido.
A minha tia mais nova assumira, desde então, as responsabilidades outrora de mamãe: averiguava se meus avós precisavam de blusa de frio, corte de cabelo ou até mistura; enviava mensagens para garantir o bem-estar de praticamente todos na família e, bom… Organizava as inevitáveis celebrações da vida terrena. Se esforçava para ser, naquele momento, o pilar de todos. Conseguia. Mas isso era, obviamente, demais para ela. Deveria ser para qualquer um.
– Eu coloco uma máscara toda vez que estou aqui. Eu não sei de onde estou tirando as forças para seguir em frente. Sinto que vou desmoronar a qualquer momento – ela me confessou, presa em um abraço forte, depois que a festa acabou.
E foi assim que, mesmo com o interior estilhaçado por conta da morte de mamãe, mesmo querendo me distanciar de tudo e de todos, uma nova eu surgiu.
Uma eu mais forte.
Mais corajosa.
Mais otimista.
E pronta para absorver as dores do (meu) mundo.
Eu: uma verdadeira suicida.
Nos meses que seguiram aquele dia, saí por todos os cantos da minha ainda viva árvore genealógica distribuindo palavras de conforto e superação. Era o que eu (achava que) tinha que fazer. Era o que, provavelmente, mamãe faria se estivesse aqui.
Abri os olhos e fitei as agulhas.
Ela apareceu poucos segundos depois. Pegou uma espécie de cartão nas mãos e avisou que aquela seria a parte mais chata. A de eliminar todo o peso que carregava no meu corpo. Sem camiseta, me sentei, então, na maca. Descobri, quando a placa de chifre de búfalo já estava em contato com as minhas costas, que a técnica se chamava Gua Sha.
– É… Está complicado! – disse, durante o processo.
Ao se despedir, me pediu para proteger o pescoço e as costas do frio, e que tentasse ficar mais tranquila, porque a toxicidade eliminada ali estaria me rondando nos dias seguintes ao procedimento.
Saí da sessão relaxada como não ficava havia tempos.
Nos dias que vieram, me senti mais sensível do que o normal. Chorei assistindo um filme da Jennifer Aniston com o Adam Sandler, derramei lágrimas vendo um campeonato de surfe, enviei agradecimentos afetuosos aos amigos… até o Faustão me emocionou. Chorei por todo o tempo em que me fiz forte – e consegui dissolver o peso que carregava nas entranhas.
“Travada” eu não estava mais. Mas não podia negar que estava ansiosa.
Ansiosa para voltar a fazer o que eu mais amava – e o que tanto ignorei durante os anos mais difíceis: escrever. Então é isso que, neste ano, um pouco menos pesada e sem a pressão toda, vou fazer. Porque o medo de que não me reste mais lembrança alguma, minha ou de mamãe, passou a me perseguir dia e noite.
Feliz 2020! Volta na semana que vem? :)
*Ilustração do post: Andrea de Santis
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Olá, Aline
Sim, me chamo Ruth.
Leio os seus textos desde muito nova, atualmente tenho 19 (pode dizer que eu sou muito nova, eu entendo)
Desde quando parou de escrever, passei a te acompanhar nas redes sociais e, em quarentena, passei aqui objetivando me distrair com uma ótima leitura e, ainda bem, encontrei, ótimas e novas leituras.
Obrigada, você faz diferença nesse mundo.