105. Dalva e João: os vendedores de cachaça de Paraty

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A luz do sol invadia o quarto através da janela do 2º andar. Ainda era umas 7 da manhã. Ao abrir os olhos, percorri na memória os eventos da noite anterior. Eu havia passado boa parte do tempo em um quiosque cheio de gringos do hostel, caído num samba na praça principal de Paraty, conhecido um rapaz que tinha como maior sonho ser ator de ‘Malhação’, feito amizade com um alcóolatra chamado Mauro… Ainda assim, a principal lembrança que eu tinha daquela segunda à noite era a de pegar um barco às 2 da manhã e, a 40 quilômetros por hora, ver os planktons iluminando o caminho por onde a lancha passava. Ventava razoavelmente, mas eu não sentia o frio que esperava. Deveria ter a ver com todas aquelas cervejas que tomei enquanto me perdia em conversas com estranhos.

Escovei os dentes e decidi arrumar as malas. Era terça-feira, eu me encontrava a 300 quilômetros de São Paulo e, no dia seguinte, já voltaria ao trabalho após alguns dias de folga. Voltar é sempre a pior parte, apesar de eu adorar o meu emprego. Voltar fica ainda pior quando você é ansioso e não tem um helicóptero que vai deixar você em casa em, no máximo, uma hora. Dobrei todas as roupas sujas e cheirando areia de praia e coloquei tudo dentro da mochila. Separei apenas duas coisas: meu RG e meu Nintendo DS, para aguentar as 6 horas de viagem de ônibus.

Pronta para ir embora, desci as escadas do hostel do Dario, que fica numa vila de pescadores no meio do mar. Logo percebi que já não éramos mais apenas 9 hóspedes. Havia dois franceses a mais, que deviam ter chego em algum momento durante a madrugada. Àquela altura, eu pouco podia fazer para construir uma amizade. Meu barco para a cidade saía em uma hora. Em mais quatro, eu embarcava para São Paulo. Eu não só não tinha tempo para conversar como também não tinha disposição. Como qualquer pessoa de ressaca, eu só queria mesmo ficar caladinha, tranquilinha, me entregando pura e inteiramente à preguicinha…

Já é tradição: toda vez que vou para Paraty, paro, antes de ir embora, num restaurante que tem o melhor peixe que eu já comi na vida. Eu nunca lembro o nome do lugar, mas sei que, um dia, bebi demais e fiz amizade com o garçom, um uruguaio que mais parece um modelo da Abercrombie & Fitch. Então, assim que desembarcamos em terra firme novamente, esse virou meu foco: comer o melhor peixe que eu, que não sou muito fã de frutos do mar, encontrei. Me virei para me despedir do rapaz que nos levou até o pier e lá estavam eles: os franceses.

Espera… Vamos rebobinar a fita um pouco. Eu falei algo sobre não ter tempo de construir uma amizade? Quero repensar um pouco isso…

O Rob e o Ludovic eram dois rapazes na faixa dos 25 anos. Eles eram amigos desde a infância e tinham acabado de começar uma volta ao mundo juntos. Na semana anterior, tinham visitado o Rio de Janeiro. Gostaram, especialmente, da amizade rápida dos brasileiros. E devem ter visto isso na gente também. Começaram a conversar sobre a vida na saída do pier e, quando menos esperamos, estavam sentados na nossa mesa, almoçando o nosso peixe favorito conosco.

Nos demos bem logo de cara. Eles eram os gringos mais curiosos que eu já tinha conhecido. O tipo de gente que você não precisa forçar um: “Aqui no Brasil, a gente faz assim”. Eles mesmos perguntavam como eram os nossos costumes, o que comíamos, o que bebíamos, como nos comportávamos. Eles queriam muito parecer locais – e por isso investiram em alpargatas da Havaianas, achando que o calçado era tão popular quanto os chinelos. Eu ri quando vi, mas não falei nada.

Caipirinha vai, conversa vem..

…Percebi que estava esquecendo de algo antes de voltar para São Paulo: de ir numa cachaçaria em Paraty para comprar algumas Gabrielas. Convidamos os rapazes para ir com a gente. Quem sabe rolava uma degustação de cachaças? Bebendo uma das nossas bebidas mais tradicionais, eles também adquiririam um conhecimento extra sobre o Brasil.

Entrando na loja, dei de cara com a vendedora Dalva*. Ela era baixinha, morena, falante e bastante simpática. Clicamos logo de início. Ela viu a minha tatuagem no braço e perguntou o que significava. Tatuei o ‘Kill Them With Kindness’ (‘Mate-os com tanta generosidade’) no braço direito em 2012. O fiz para lembrar de sempre tentar ser melhor para as pessoas. O fiz porque fazer o bem também me faz extremamente feliz. Me deixa num estado de realização fora do normal. Expliquei os dizeres a ela, que ficou com os olhos cheios de lágrimas e um sorriso enorme no rosto.

Quando disse que os caras com a gente eram franceses, a Dalva chamou a gente para um balcão no canto esquerdo da loja e avisou que começaríamos uma degustação para que eles (e nós também) pudéssemos saborear algumas cachaças diferentes e decidir, enfim, o que levar. A princípio, eles não entenderam nada. Ficaram ali parados só vendo ela tirar algumas garrafas do pequeno refrigerador e colocar em cima do móvel. Avisei que eles não precisariam pagar por aquilo, que era só para provar as delícias de Paraty. Os caras, óbvio, adoraram.

Em meio ao ato de encher os copinhos e distribuir para a nossa turma, a Dalva voltou a falar comigo sobre tatuagens. Disse que tinha adorado a minha e que ela também tinha ‘coisas’ importantes escritas em seu corpo: os nomes dos dois filhos, um em cada pulso, para lembrar sempre do amor que sente por eles.

Antes de eu pensar em qualquer frase de efeito para dizer para a Dalva que era legal ela ter escrito o nome dos filhos no corpo, ela teve um rápido momento de reflexão e, de forma escandalosa, falou:

Tatuei? Tatuei! Mas pra essas pestes sair do corpo da gente é uma dor, viu? Parece que pega assim na barriga e vem uma faca arrastando tudo até sair a cabecinha.

Todo mundo começou a rir, surpreso com o comentário da Dalva.

Ela logo mudou de assunto e, descontraída, começou a falar do João, um outro vendedor de cachaça.

– Vem cá, João. Esses aqui são franceses e não tão me entendendo, não. Fala você com eles!

Eu achei que era brincadeira, que o garoto novinho que vendia cachaça na loja ia fazer alguma piada e desconversar, mas ele começou a falar em francês fluente e com sotaque impressionante com os rapazes do hostel. Naquela hora, quem ficou sem entender uma palavra fomos nós.

Dalva contou que João era uma das pessoas mais dedicadas que já conhecera. Que fez uma amiga em Paris e que aprendeu a falar francês sozinho só para realizar o sonho de, um dia, visitá-la. Disse que gostaria que os filhos fossem autodidatas assim como ele.

– Eu tenho certeza que esse menino ainda vai pra lá. Ele é muito esforçado.

Os franceses disseram que tinham escolhido qual cachaça comprar. Antes de levar, eles perguntaram ao João onde ficava o correio mais próximo. O Rob e o Ludovic avisaram que estavam mandando presentes “em tempo real” para os pais, na França. Por cada cidade que passavam, mandavam uma lembrança para a família, para que também pudessem ter um gostinho do que é o mundo.

Deu a hora de ir embora.

Dalva, leve do jeito que era, me deu um “tchau” mais parecido com “nos vemos em breve”, mesmo sabendo que nunca mais me veria.

Os franceses agradeceram o mini tour e se despediram dizendo que iam procurar uma cachoeira para se refrescar.

Mas eu fiquei mesmo é com o João na cabeça. Ele, que desejou “boa viagem” aos franceses na língua deles e que ficou meio chateado por não poder treinar mais o que tinha tanto estudado. Comecei a pensar sobre ele no ônibus de volta para casa. Eu tive certeza de que ele iria conhecer a amiga parisiense em breve.

Aos 14, eu tive um sonho que parecia impossível demais de realizar. Eu queria fazer um intercâmbio (ainda nem pensava que poderia ser na California).

Meu pai era taxista e minha mãe professora.

Eu consegui.

O João também vai conseguir.

* A Dalva, na verdade, não é Dalva. Esqueci de perguntar o nome dela :( Mas tenho certeza que Dalva combina bem <3

Abaixo, confira um vídeo da viagem para Paraty, no Rio de Janeiro. Se gostar, se inscreve no canal do 1001 pessoas que conheci antes do fim do mundo no YouTube

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