Mamãe conheceu Alzenir na época em que trabalhava como secretária em um banco para pagar a faculdade de Psicologia. Eram raras as vezes em que Alzenir aparecia lá em casa, na periferia da zona leste. Eram ainda mais raras as vezes em que a visitávamos em seu sobradinho, localizado numa travessa de uma grande avenida, no caminho para o meu “médico do pulmão”, como eu costumava chamar o pediatra que frequentei durante toda a infância.
Toda vez que se juntavam, mamãe e Alzenir relembravam as aventuras no escritório com gargalhadas extremamente escandalosas. Sempre, ao fim do encontro, arranjavam um jeito de dizer, transbordando orgulho, que amizade verdadeira era aquilo que tinham. Que podiam passar anos sem se ver, mas que o respeito, o carinho e o cuidado jamais desapareciam. “Não precisa ligar todo dia”, repetiam, depois de um abraço caloroso. Foi desta forma, então, que sustentaram uma amizade poderosa até três anos atrás, quando mamãe partiu.
Mamãe não era o tipo de mãe que tinha muitas amigas – apesar de ser uma pessoa bastante cativante. Também não era o tipo que deixava os filhos sozinhos em casa. Quando saía, nos levava a tiracolo. Não me lembro de nenhuma vez, antes dos meus 14 anos, em que fiquei sozinha em casa. É por isso que em toda visita a casa de Alzenir, lá íamos nós, meu pai, meu irmão e eu. Talvez, além da preocupação por ficarmos sem monitoramento, mamãe pensasse que um pouco de socialização extra não faria mal… e que a amizade verdadeira poderia se repetir entre eu e a Agatha, a filha da Alzenir, um ano mais nova do que eu.
A verdade é que eu ainda não era o ser genioso que sou hoje, mas já havia decidido há tempos que a Agatha, diferente da Daiane, do Ciro e do Julio, não era bem o tipo de amiga pra mim. Nossas brincadeiras não batiam, não conseguíamos conversar (até porque eu era extremamente tímida quando criança) e, no geral, não parecia existir o menor clima para seguir em frente com a ideia. Mesmo assim, a Agatha estava em todas as minhas festinhas de aniversário. Há fotos dela comigo por toda parte: as duas crianças sempre com aquela cara de desinteresse uma pela outra.
Eu tinha 12 anos quando Agatha e eu enterramos a nossa suposta amizade. Com uma xuxinha prendendo o volumoso cabelo ondulado, eu corria pela rua de casa com a Franciane, que essa, sim, era minha melhor amiga – dessas de mandar cartinhas coloridas e de treinar as coreografias do É o Tchan na garagem de casa. Nesta tarde, Alzenir veio nos visitar. Não sabia que ela viria. E como eu já estava mergulhada na brincadeira de pega-pega, só disse um “oi” e continuei enlouquecida, correndo pra lá e pra cá. Neste dia, a Agatha, com sua tiara cor de rosa com glitter branco como acabamento, calça jeans skinny e blusa de renda branca, ficou do portão da minha casa nos observando brincar. Eu olhava para a Agatha de longe: era um certo desprezo aquilo que ela demonstrava por toda aquela correria. Era tanto que ela não se segurou. Me chamou sem falar uma palavra, usando apenas um gesto com os dedinhos. Me aproximei, sorrindo e com um pinguinho de suor escorrendo pela testa. E, aí, ela finalmente disse aquelas palavras:
– Por que você fica correndo assim o tempo todo? – disse, com as sobrancelhas arqueadas.
Ora! Eu não entendi muito bem do que se tratava aquela pergunta. Qual era a real dúvida escondida por trás daquele questionamento? Então, inocente e de coração aberto, respondi:
– Porque eu sou criança!
O horror tomou conta de seu rosto. O descontentamento com a resposta foi tanto que ela precisou arrumar um fio de cabelo que apontou na cabeça na hora da declaração. E, daí, sem a menor dó, deu a deixa que faltava para eu jogar de vez a pá de terra naquilo que tínhamos:
– Eu não sou criança. Eu sou uma pré-adolescente!
Ah, pronto!, eu diria, se fosse hoje em dia. Uma garota de 11 anos não mais se reconhecendo como criança. Não mais se permitindo correr feliz pelas ruas do bairro com sua melhor amiga.
Fiquei sem reação naquele dia com a Agatha. Naquela época, havia recém-descoberto a expressão facial para representar um “Dãããrrrr”. E foi ela que me invadiu naquele momento. Somente a fiz e saí correndo, sem dizer nada. Deixei que ela interpretasse aquilo como quisesse.
Não me recordo de ter visto a Agatha novamente depois disso.
Os anos se passaram e, durante a faculdade de jornalismo, consegui um estágio em uma revista adolescente. Foi um dos empregos mais divertidos que já tive, mas juro: também foi um dos mais difíceis. Porque foi onde eu entendi muito sobre a minha personalidade, sobre quem eu sou. Foi esse emprego que me ajudou a ver o que havia acontecido entre eu e a Agatha: é que, diferente dela, eu não havia lido, muito menos me interessado por ler, na época, essa espécie de manual que existe na adolescência.
A verdade é que eu nunca me reconheci como uma adolescente – apesar de ter, obviamente, passado por essa fase. É como se eu nunca tivesse vivido a adolescência. É como se tivesse pulado de criança direto para a vida adulta. Eu assistia àquelas séries, como “Confissões de Adolescente”, e não me reconhecia naqueles personagens. Não me via interessada por garotos, nem por sexo. Não sonhava em ser a popular do colégio, apesar de ter virado amiga de uma garota popular. Não me preocupava com os apelidos que me botavam porque a opinião das pessoas da escola realmente não faziam diferença na minha vida. Não queria ir a festas ou ao cinema. Não queria essa liberdade que (quase) todo adolescente quer. Não tinha conflito algum com meus pais. Não cobiçava os jeans da Prefixo. Não me maquiava e mal penteava o cabelo. Não desejava seios enormes, inclusive tentava esconder as pequenas azeitonas que cultivava na área. Demorei a descobrir o sutiã de bojo. Li a revista Recreio até os meus 16 anos – e daí troquei para Superinteressante. Não quero me gabar, juro. Mas a única vez que comprei uma revista adolescente foi para conseguir cantar a letra de “Not a Girl, Not Yet a Woman“, da Britney Spears, completa. A edição trazia um poster com a letra em inglês e a versão traduzida. Apesar disso, a Britney não era uma ídola na minha vida. Não tive ídolos naquela época. Backstreet Boys, Spice Girls, N’Sync… Não. Quem era mesmo uma pessoa que eu admirava era a professora Renata, que aos 17 anos já me dava aulas de inglês no CCAA.
Então, hoje, lembrando da Agatha, também me peguei pensando:
Me perdoa! Eu não li o manual!
Quem sabe, se eu tivesse lido, teríamos sido mais amigas?
Mamãe costumava dizer que eu sou uma pessoa desencanada, “desapegada da vida”. Acho que ela estava certa.
*Ilustração da talentosíssima Rebecca Flattley.
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Textos sobre essas fases são meus preferidos. Feliz por você nos presentear com seu olhar único e seu jeito envolvente de contar histórias, com esse seu relato pessoal.
Obrigada por isso. Teve um tempo que lia bastante aqui e parei por causa das redes sociais (shame on me), vou me dedicar a ler mais por aqui. Sempre uma experiência agradável e necessária. ❤️
Que texto lindo, sempre passo por aqui de vez em quando pra ler todos que ainda não li hahahaha
Tenho 19 anos e esse texto me fez lembrar da minha adolescência, que apesar de ter lido alguns manuais, não pude seguí-los por conta de uma educação muito religiosa.
Minha amiga dessa época tem a mesma idade que eu e, está casada, enquanto eu me observo em um lugar muito diferente. vejo que mesmo tendo passado por essa fase juntas, nos tornamos tão diferentes… então, será mesmo que mesmo se você tivesse lido a cartilha ainda seriam amigas? hahahaha
Obrigada, Aline!