95. O Ciro, o Julio, o Tio Gordo e a Daiane

Lápis_De_Cor

Depois de ganhar uma mini feirinha numa dessas idas ao Mappin, um famoso complexo de lojas nos anos 90, eu achei que nunca mais desejaria tanto algo na minha vida. Mas eu tinha apenas quatro anos – e obviamente ainda não sabia nem de longe que, após passar um bom tempo brincando com aqueles mini pimentões, mini tomates e mini bananas de plástico, a vida se tornaria num enorme universo de vontades. Vontades que vinham uma atrás da outra, o tempo todo. Eu provavelmente tinha mais vontades contabilizadas durante a infância do que, por exemplo, idas ao banheiro para fazer xixi. Minha mãe pode contar melhor sobre isso, mas de uma coisa eu sei: depois dessa feirinha de brinquedo que eu ganhei, eu só quis muito uma coisa na vida. E essa coisa era entrar no incrível ônibus do Tio Gordo.

O Tio Gordo era o homem que, todo dia, por volta do 12h30, parava na porta da minha casa, buzinava escandalosamente e levava o meu irmão, Willian, para longe por algumas horas. Eu não fazia a menor ideia do porquê meu único irmão, sangue do meu sangue, se vestia de azul de segunda a sexta e entrava naquela geringonça. Toda vez que ele, de mochila nas costas, acenava com um “tchauzinho” para mim e a porta se fechava, eu abria o berreiro. De olhos aguados, via o ônibus desaparecer na grande avenida de frente para a minha casa. Eu queria muito saber o que tinha dentro do ônibus do Tio Gordo. Queria saber para onde o Willian ia todos os dias, e queria, também, saber por qual motivo ele demorava tanto tempo para voltar. É que, enquanto o Willian estava fora, dava tempo de eu fazer muita coisa. Eu arrumava todas as minhas cinco bonecas, assistia “Castelo Rá tim Bum” e Glub Glub” , tomava banho e até tirava uma soneca!

Era janeiro de 93 quando estreei na pré-escola. E era, finalmente, a minha vez de também saber o que tinha no tal ônibus do Tio Gordo. Nem me lembro da primeira vez que subi aqueles degraus, mas lembro de, mesmo pequenininha, pensar que aquele “tio” não era muito bem encarado. Ele era branco, tinha cabelos grisalhos, uma barba mal feita e o rosto um pouco emburrado. Sua cara quadrada deixava seu queixo um pouco em evidência demais – só depois de crescida percebi que o meu queixo ficaria bem parecido com o dele. O gordo vestia sempre camisas… E sempre floridas. Pensava, toda vez que olhava pra ele, que ele deveria ser um desses caras que fuma bastante cigarro. O Tio Gordo tinha essas marcas fundas na cara que me incomodam até hoje nas pessoas.

Na mesma época que descobri que o ônibus do Tio Gordo nem era tão fascinante assim, aos meus 6 anos, também descobri outras coisas como: como era ser mordida por um ser humano e como era ter amigos homens. Pouco tempo depois, também descobriria como era querer muito ser a vaca no musical da Xuxa da escola e acabar sendo ofuscada com um papel de paca. Isso, o papel de paca. Eu ainda era novinha, mas fiquei, por dias, pensando em perguntar para a professora Tânia, uma branquela com óculos fundo de garrafa, se alguém no mundo sabia o que aquele animal era. Eu era tímida demais, então fiquei quieta. Mas lembro bem que, no dia da apresentação, a minha mãe não conseguia segurar o sorriso no rosto ao me ver fantasiada de um treco bem parecido com uma capivara.

Voltando às descobertas, preciso falar do dia que levei a tal mordida da Daiane, que depois virou a minha melhor amiga, no primeiro dia de aula. Eu vestia uma Melissa transparente nesse dia e lembro até do que minha mãe havia colocado na minha lancheira para o recreio: suco natural de caju. É… Por anos, o cheiro da bebida ficou grudado no meu nariz. Eu tinha asco por suco de caju. Mas o trauma ficou no passado. Hoje em dia, é um dos meus sucos favoritos – depois de manga, morango e abacaxi.

A pré-escola passou e, no primeiro ano do ensino fundamental, a minha relação com a Daiane só cresceu. Ela era a minha pessoa favorita no mundo. Também era a minha companheira de Educação Física predileta. Nessa idade, o que eu mais gostava de fazer era pular na cama elástica com ela.

A Daiane era um doce – apesar da mordida, e por sua vez, preferia brincar no parquinho da escola, que tinha uma espécie da casinha da árvore com vários escorregadores ao redor. Pra falar a verdade, eu me sentia incomodada com a areia desse parquinho, que vivia entrando na minha meia e grudando nos meus dedos. Meu pé sempre foi pequeno e qualquer pedrinha já era uma dor quase insuportável. Eu aguentava, só pra ver a Daiane feliz.

No segundo ano da escola, o que era uma dupla virou um quarteto: conhecemos o Ciro e o Julio. O Ciro era um magrelinho com cara de pardal que sempre vestia bermuda e all-star. Era falante, sorridente, e parecia mais interessado nas amizades que criaria na escola do que, de fato, nos estudos. Já o Julio era o cara dos lápis de cor. Na sala, ele era o cara que tinha a caixa com mais cores e isso me fazia sentir um pouco de tristeza. Eu sempre quis uma caixa de 72 cores, mas minha mãe nunca quis me dar de presente. O que eu mais gostava do Julio é que a gente sempre fazia trabalho junto e, por isso, dividia o material. Eu adorava, principalmente, porque podia usar todos os tons de cor de pele, marrom, azul e amarelo que um ser humano pode desejar.

Descobri com o Ciro e o Julio duas coisas: que, talvez, eu me identificasse mais com eles do que com a Daiane, e, posteriormente, que eles foram os meus melhores amigos homens da infância – e que eu sinto uma falta doida daquela época até hoje. A parte triste disso tudo? Eu me mudei de escola na terceira série e nunca consegui dar tchau para nenhum deles. O tempo passou voando e ninguém, nunca!, ocupou o lugar desses moleques. A parte feliz? Voltei a estudar na mesma escola quando estava no primeiro ano do ensino médio, quase 10 anos depois, e reencontrei a Daiane e o Ciro. O Júlio deve estar pintando um arco-íris bonito ou um Frajola desengonçado por aí com suas 72 cores de lápis.

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