Eu já havia perdido as contas de quanto tempo fazia desde a minha última saída na rua. Sete, talvez oito meses? Na prática, isso significava duas coisas. A primeira: que eu já havia esgotado todas as possibilidades de entretenimento disponíveis e executáveis dentro do meu apartamento na Bela Vista. E a segunda: que eu já não estava tão certa assim de que era capaz de recusar um convite tentador do meu pai:
– Tem um pomar que tem umas mudas já produzindo daquela frutinha que você gosta. Mirtilo, né? E se a gente fosse lá comprar uma mudinha para plantar aqui em casa? – ele perguntou, ainda meio desconfiado, como se estivesse arrependido das palavras recém-pronunciadas.
Papai, talvez melhor do que ninguém, sabia que eu estava levando esse negócio de isolamento social a sério. Que nem ao mercado ou à farmácia eu estava indo. A única exceção que abri foi a de ir da minha casa até São Mateus, para passar um tempo com ele. Por esse motivo, também sabia que ao fazer aquele convite, existia uma grande possibilidade de levar um esporro.
Durante a infância, era papai, com mamãe, que corriam para o hospital comigo quando eu começava a delirar de febre. Naquela época, qualquer ventinho me causava pneumonia – até aqueles refrescantes dos finais das tardes de verão. Demorou até descobrirem que o meu sistema imunológico precisava de bastante fortalecimento e que o meu pulmão, já bastante machucado, implorava por fisioterapia. Por conta disso, sou, até hoje, grupo de risco até para gripe.
– Eita, Rubinho… Onde é que fica? – perguntei, ansiosa para saber a resposta.
Mirtilo só perdia para jabuticaba na minha lista de frutas favoritas. Ele ocupa um lugar gigantesco na minha memória afetiva desde os tempos em que eu morava com a Terri e com o Steve em Santa Barbara, na Califórnia. Absolutamente tudo na Califórnia envolvia mirtilo – um dos motivos para eu amar tanto esse lugar.
Depois de olhar as trezentas e dezessete fotos disponíveis do tal pomar no Google e de repetir mais oitocentas vezes todas as recomendações de colocar a máscara, não chegar muito próximo de ninguém e passar álcool gel de dois em dois minutos, saímos rumo à Poa para comprar a muda de mirtilo.
– Lembro desse hospital aqui. Sua mãe e eu passávamos sempre na frente dele quando íamos visitar o seu tio Jairo – ele começou, assim que entramos em Guaianases, que fica no caminho para Poa.
Era ao mesmo tempo bonito e triste como quase todos os assuntos nos levavam ao mesmo lugar: mamãe. Durante algum tempo, tive crises de ansiedade muito fortes. O motivo principal era o medo – o medo de a memória dela, aos poucos, ir se desfazendo dentro de mim. Hoje, mais ainda quando estou perto de papai, sei que isso é impossível.
Continuamos conversando sobre o passado nos minutos seguintes. Falamos da minha família hiper religiosa, do meu tio pastor, da filha dele, uma prima querida, que até álbum gospel lançou quando ainda era criança…
– Aqui no Maps diz que vamos chegar em dois minutos – eu disse, apreensiva.
Apesar de o lugar ser aberto e o dia estar completamente ensolarado, eu ainda tinha receio de sair por aí, por esses lugares não-esterilizados, como agora eu chamava tudo que não cabia dentro da minha faxina obsessiva toda vez que recebia algo da rua.
Repeti as regras:
– Vê se não vai ficar muito perto do vendedor, ein? Arruma a máscara e não toca nela! Não fica levando a mão ao rosto. Tá com o álcool no bolso, né? – Meu pai balançou a cabeça, concordando. Naquele momento, eu parecia mais sua mãe do que sua filha.
Caminhamos entre árvores e mudas até encontrar a Bianca, a funcionária do pomar. Era como se aquele fosse o seu primeiro encontro com alguém de fora em muito tempo. Eu entendia – porque era exatamente aquilo que eu sentia. Uma sensação boa de conversar com alguém novo.
Bianca vestia um chapéu de cowboy que a protegia do forte sol e uma galocha suja, provavelmente pelo uso no meio das plantações. Se protegia de tudo, menos do COVID. Estava sem máscara.
– Venham cá que vou mostrar para vocês os mirtilos. Estão lindos e em pouco tempo já vão dar colheita – disse, animada. Deixamos que ela caminhasse mais a frente. Todo cuidado era pouco.
Era a primeira vez em meses que eu via papai tão animado.
Papai trabalhou a vida inteira como taxista – e o trabalho na rua o ajudou muito a não pirar depois que mamãe faleceu. Já estava sozinho, trancado dentro de casa por conta da pandemia, há todo aquele tempo. E, durante essas “férias” forçadas, começou a dar mais e mais valor para um hobby antigo: cuidar de plantinhas. Nosso quintal agora tinha dezenas de vasos, de tamanhos diferentes. Seu sonho era cultivar bonsais.
– E framboesa? Tem framboesa? – ele perguntou.
Bianca respondeu que sim. Falante, ela nos encaminhou para o canteiro específico de framboesas e de amoras.
– É que meu filho gosta muito, mas a gente comprou uma muda muito mixuruca, que acho que não vai dar em nada tão cedo – o meu pai se explicou.
Bianca percebeu que tinha, em sua frente, alguém apaixonado por natureza. Esperta, começou a encaminhar meu pai para todos os outros canteiros de frutas.
– A gente pode levar uma dessa também? – ele me perguntou, apontando para a amora, como se realmente precisasse da minha aprovação para comprar uma plantinha.
Eu derretia no calor. Não estava acostumada a usar máscara por tanto tempo – só vestia quando, em raros momentos, descia até a portaria do apartamento para pegar alguma encomenda. Mesmo ofegante, resolvi continuar a segui-los pelo pomar. Não via papai assim há muito tempo. Queria deixá-lo ser feliz sem as minhas interrupções.
A visita, que seria rápida, durou cerca de uma hora. Conversamos, degustamos frutinhas e aprendemos como cultivar outras plantas. Papai finalmente estava exausto. Quando nos encaminhávamos para pagar a conta, passei por um girassol, ainda fechado. Nunca tinha visto um girassol pessoalmente.
– Sempre quis um girassol – eu disse, sem a intenção de ser ouvida.
– O problema é que girassol morre e depois não nasce outro no lugar, né? – comentou o meu pai.
– Ah, é que nem tem motivo para eu gostar de girassol, mas eu gosto muito. Me deixa feliz ver girassol – expliquei.
Bianca veio em minha direção, se agachou, pegou o vaso de girassol e o estendeu para mim:
– Se te faz feliz, toma! Estou te dando esse girassol de presente. Tem três florzinhas nascendo aí. Pode levar!
Fiquei surpresa com o gesto. Pensei que nunca havia sido tão fácil ser feliz.
Num mundo ideal, eu abraçaria Bianca em forma de agradecimento. Num mundo com COVID, só a chamei de maravilhosa e disse que mandaria as fotos de quando meus girassóis brotassem.