45. Trine, a minha primeira ex-amiga


‘Hold On’
,
do Alabama Shakes, era a trilha sonora do caminho de volta para casa. Encapuzada e batendo o pé conforme o ritmo da música, eu tentava esquecer que a ressaca era das bravas. Foi quando a arrancada do trem, que seguia sentido Pinheiros, me empurrou para mais perto de uma baixinha de casaco de veludo preto, cabelo chocolate de comprimento médio e olhos verdes brilhantes. Dizer que ela era parecida com a Trine não era o suficiente. De tão iguais fisicamente, eu poderia jurar que aquele era, de fato, a Trine que eu conhecia. É. Em terras brasileiras. Explorando a ‘casa’ de uma ex-amiga. Ex-amiga que no caso sou eu.

Não é brincadeira: a Trine é a minha primeira ex-amiga. Nos meus quase 26 anos de vida, nunca tive problema com ninguém. Nesse tempo todo, o mais próximo que cheguei de perder uma amizade foi no meu primeiro ano na escolinha. Na minha estreia no prezinho, a Daiane se sentou na fileira ao meu lado na sala azul do colégio e me olhou com uma cumplicidade que me garantia que ela seria minha amiga para sempre. O problema é que, no intervalo, a garotinha sardenta com cara de ‘Rugrats’ passou por uma instabilidade mental e me deu uma mordida no braço que me deixou marcada por quase uma semana. Acho que aquela foi a primeira vez que eu senti raiva na vida, mas nem durou tanto tempo: no dia seguinte, já estava tudo ok. A Daiane, inclusive, estudou comigo, na mesma escola, até o terceiro colegial. Mas com a Trine foi diferente: eu não senti raiva em nenhum momento, quem sentiu foi ela.

Quando cheguei na Califórnia para o meu tão sonhado intercâmbio, a Trine foi peça importante na minha adaptação. Assim que cheguei a casa dos Cook, na Roberto Avenue, ficou decidido que ela seria minha roommate. Dois anos mais nova, 20 centímetros mais baixa, alguns quilos mais gordinha, mas com a mesma personalidade forte que eu sempre tive. Trine era natural de Copenhagen, na Dinamarca, e como eu já disse, tinha os olhos cor de mar mais intensos que eu já tinha visto. Usava sempre jeans e sapatilha, combinada com casacos de veludo que variavam conforme o seu humor: preto, vinho, verde…

Trine foi quem me ensinou a andar pela cidade toda, apesar de ela própria quase nunca ter entrado em um ônibus durante sua estada. Ela tinha um Mustang preto conversível usado e fazia questão de dirigi-lo para tudo quanto é lado:

– ‘Quer ir na Borders?‘, ela me perguntava todo sábado de manhã, já sabendo a resposta. A Borders era nada mais, nada menos do que uma livraria enorme no centro da cidade que virou o meu lugar favorito no mundo. É claro que eu queria ir lá!

Durante a semana, apesar de não termos os mesmos horários na escola, ela me esperava até as 16:45. Entrávamos no carro, abaixávamos o teto solar e, em velocidade considerável, descíamos a Anacapa St. cantando nossa música favorita bem alto e com os braços levantados. ‘Tik Tok’, da Ke$ha, era a música do verão e marcou nossas baladas nas segundas e quartas à noite. Quando o ‘Wake Up In The Morning Feeling Like P-Diddy’ começava a tocar, arrastávamos nossas ‘Shark Bites’, bebidas famosas na cidade, para a pista e dançavamos como se aqueles realmente fossem os últimos 3 minutos e meio das nossas vidas.

Mas a amizade com a Trine não durou, como eu já adiantei. Nas semanas seguintes a minha chegada, eu percebi que a Trine era um pouco parecida com a Rebeca, personagem vivida por Leighton Meester no filme “The Roommate”. A Trine, que era bem falante e bem divertida, não tinha muitos colegas na escola e, por isso, eu tentava incluí-la nos rolês, mas ela nunca estava a fim. Quando saíamos todos juntos, a síndrome de superioridade dela atrapalhava tudo. A verdade é que a Trine fazia de tudo por mim, mas odiava todo o resto. Sempre tentava me afastar da galera, sugerindo programas que obviamente não envolviam mais de duas pessoas.

Ela também não curtia a ideia de eu me dar bem com a minha host-family. Isso porque tinha uma briga infinita com a Terri, a ‘mãe’ da casa, por achar errado ter que pagar pela internet e por todo o resto que não estava incluso no pacote do programa. Também acreditava profundamente que a Terri deveria nos dar mais carinho – levar no cinema, buscar na escola, viajar com a gente… Nenhuma das outras 5 meninas da casa concordava com isso. Só ela. Pra gente, aquele era um momento único, pra gente se conhecer, se arriscar. Pra gente viajar e se perder e se encontrar. Mas eu entendia a Trine, afinal, ela já havia me contado da família problemática que tinha na Dinamarca. Aquele tipo de gente a quem não falta dinheiro, mas falta todo o resto.

Era a última terça-feira de janeiro quando a Trine acordou às 4 da manhã, empacotou todas as coisas dela, colocou no Mustang e foi embora. Ela saiu antes de o dia amanhecer totalmente, sem nem falar com a Terri e agradecê-la por tê-la recebido na casa. Aconteça o que acontecer, eu nunca vou concordar com isso. Pra mim, você precisa deixar com que quem te ajudou saiba o quanto você aprecia o esforço. Nem que a tal ajuda tenha sido mínima.

Quando a Trine saiu de casa, ela esqueceu o computador e a mochila de livros do curso. Eu escondia ‘o que ficou’ da nossa host-mom porque sabia o quanto a falta de educação da Trine a havia chateado. Nas semanas seguintes, carreguei ‘o que ficou’ para a escola todos os dias para devolver para a minha amiga dinamarquesa, que me tratava com cada vez mais frieza por mensagens do celular. ‘Pode trazer outro dia? Hoje não posso pegar’, dizia todo santo dia. Eu sou fofa e sou paciente, mas eu não precisava fazer aquilo. Aquela briga não era minha, nem aquilo ‘que ficou’. E daí quem ignorou a Trine fui eu – eu disse que tenho a personalidade forte, não disse?

Entreguei as coisas da Trine para a Terri. A Trine nunca pegou o computador dela de volta – não que eu saiba. E nunca agradeceu a Terri pela moradia ou pela comida ou pelo simples fato de ela deixar que ela usasse aquele cobertor aquecido que gastava horrores de eletricidade. E ela também nunca me disse o motivo de ter me envolvido na briga. Só me excluiu do Facebook. E pra mim, excluir do Facebook é coisa séria.

6 thoughts on “45. Trine, a minha primeira ex-amiga

  1. Cara, eu gosto tanto desse teu blog! Esse post me tocou em especial porque lembrei de quando morei em uma república em SP. Morar com pessoas estranhas, principalmente quando é a sua primeira vez longe de casa, não é das coisas mais fáceis… que pena que a Trini não prezou o seu cuidado com ela depois que ela foi embora, mas imagino que ela já tenha se arrependido. No meu caso, quem saiu fui eu, pouco tempo depois de ouvir sem querer as outras meninas zoando comigo pelas minhas costas e algumas até inventando situações que nunca haviam acontecido. Outro dia recebi um email delas, que precisavam de uma ajuda financeira de todas as meninas que haviam passado por lá…

    1. Seus textos são incrivelmente bem redigidos… Dá pra “viver” junto enquanto lê…
      É uma pena quando pessoas que consideramos importantes na nossa vida agem de forma tão estranha e inaceitável!
      Bom, pelo menos ela lhe rendeu um ótimo texto!

  2. Tem gente que é mal agradecida mesmo, uma pena. Algumas pessoas precisam aprender que não serão o centro da vida de ninguém. Que somos humanos, que erramos com o próximo, com nós mesmos…
    Difícil lidar, não é? Também já tive amizades assim. Hoje me mantenho distante desse circuito. Me preservo.
    Esse blog é amor puro.
    Abraços.

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