64. O DJ do ‘funk é música de pobre’

Longe de mim querer me gabar, mas eu realmente tenho uma memória genial. Aliás, essa talvez seja uma das coisas que mais gosto na minha pessoa. Isso de lembrar de gente, lembrar de nomes, lembrar de situações e de detalhes. E é por esse motivo que me chateia tanto esquecer tão fácil de, por exemplo, como eu acho divertidas as festas de final de ano das firmas. Pode anotar que não tem erro: numa dessas confraternizações, você vai 1) ou deixar de dizer ‘oi’ para alguém porque não a reconheceu depois de tanta maquiagem que ela colocou para “arrasar”, ou 2) se surpreender com aquela pessoa mais introvertida, geralmente do RH, se soltando loucamente e descendo até o chão na pista.

No ano passado, enquanto todo mundo curtia as bebidas free na festa do Yahoo, eu navegava para Salvador, onde viveria um dos ‘pa-pa-pa-party all the time’ mais intensos da minha vida. Em 2011, me embalei ao som de Zezé di Camargo e Luciano ao vivo numa comemoração da Editora Abril. Cantei “É o Amor” com as mãozinhas pra cima, gritei “A Ferro e Fogo” de forma bastante teatral e até tirei fotos com gente que eu mal conhecia. No ano anterior, na festa da mesma empresa, eu voltei bêbada numa van e fiz amizade instantânea com um dos editores-chefe de uma revista famosa da editora:

“Amigo, vai bem pra casa hoje, por favor. Não pega o carro agora bêbado assim não”, eu disse, abraçando-o bem forte na hora da despedida. Dias depois, reconheci a voz dele no hall da firma, assim como ele também reconheceu a minha, mas finji que nada havia acontecido.

Com todo esse histórico de comemorações com diversão e sem climão, resolvi que neste ano priorizaria a festa da firma no meu calendário tão ocupado de… trabalho! Vesti uma roupa qualquer, rachei um táxi com umas amigas e lá fomos nós, para um lugar chamado The Sailor, no Itaim Bibi, zona nobre de São Paulo.

A firma tem uma coisa bem legal, que é uma banda composta só de gente que trabalha na empresa. Tem um fulaninho que toca guitarra, outro que toca baixo, outro bateria, um pessu que canta… A galera ensaia umas músicas por uns dois meses, depois vai lá e se apresenta para todo mundo. Quando o “show” acaba, parece comemoração de fim de nível no “Guitar Hero”. Só falta mesmo aparecer a tela de “23 carros queimados, 70 garrafas quebradas”, etc. É um momento digno de rockstars. E na festa, depois que a banda tocou, só restou mesmo que o DJ aparecesse com uns hits pra meio que fechar a noite. E ele tocou uns Akon, uns David Guetta, uns Black Eyed Peas e uns Calvin Harris. Essas músicas de playboy que a gente curte de vez em quando. Só que daí todo mundo pedia funk, afinal, que festa de firma não toca pelo menos um funkzinho? Um “Dança da Motinha”? Um “Éguinha Pocotó”? Um “Pa ra pa pa pa pa pa”, sabe? Dessa noite, lembro de muita gente vindo comentar que o DJ se recusava a tocar funk. E eu, que sempre xaveco todo mundo para ouvir minhas músicas favoritas na balada, resolvi ir bater um papo lá na cabine.

– “Poxa, essa festa aqui tá precisando de ostentação, cê não acha não? Ainda não tô vendo o RH descendo até o chão”, eu perguntei, rindo.

Ele me olhou com cara de irritação, provavelmente pronto para mandar ir tomar no cu a quadragésima nova pessoa insistindo com ele que queria ouvir funk na festa.

– “Eu não toco funk não. Não tenho nada de funk aqui, Deus me livre”, ele respondeu, emburrado.

– “Como assim você não tem um MC Guimê aí? DJ tem que ser eclético, né não?”, eu disse, firme, mas sem ser escrota.

“Meu, eu não tenho funk, não adianta. Funk é coisa de pobre. O dono do bar nem deixa eu tocar funk aqui. Se eu toco funk eu tô ferrado”, ele disse.

Depois do “funk é coisa de pobre”, demorei pelo menos 20 segundos para me recompor. Apesar de o clima ser de comemoração, eu queria mesmo contar uma ou duas coisinhas sobre a vida para o cara que tocava na festa da firma naquela terça. Mas eu nem soube por onde começar. Será que pela parte onde eu digo que morei a vida inteira no extremo leste da Capital Paulista e que conheci gente mais digna do que nesses meus últimos 2 anos morando “em São Paulo de verdade”? Ou será que pela parte onde digo que corria de Havaianas quebradas em prédios recém-construídos da Fazenda da Juta e que essa era uma das minhas maiores diversões? Ou será ainda que reservava um tempo para contar das intermináveis tardes que as crianças do bairro brincavam de Power Rangers nos tubos que a Prefeitura deixava na rua até iniciar novas construções? Ou da vez que eu fui assaltada, mas que fiz amizade com o ladrão? Ou de como minha vida na escola pública até a 8ª série foi bem mais legal do que os 3 outros anos na escola particular? Dos ensinamentos de vida no busão lotado às 6 da tarde? É… Eu acho que ele não entenderia nada disso.

– “Beleza, funk é música de pobre. Então toca uma Shakira, pô! Shakira você tem, senão você não é DJ de verdade”, eu disse, calma e fofa.

Ele brincou comigo e agradeceu a minha “parceria” e a minha educação.

– “Pode ser essa daqui ó? Só vou tocar porque você foi muito educada comigo, diferente dos outros!”, o DJ que acha que funk é música de pobre disse.

“Waka Waka” subiu e fez a galera dançar, mas a animação durou pouco tempo e deve ter preocupado o DJ playboyzinho da casa. Cerca de uma hora depois de tentar tudo quanto é música para levantar os funcionários, o “eu só quero é ser feliz” subiu alto nas caixas de som da festa. Uma roda de dança, com times de todas as áreas da empresa, se formou bem no meio do local. E todo mundo dançou a “música de pobre”. Olha, seu DJ, pobre mesmo é o seu espírito.

3 thoughts on “64. O DJ do ‘funk é música de pobre’

  1. Tem uma memória muito bom mesmo, hahahah lembrou de mim depois de 1 ano que me viu, quando me levou até os meninos do Vida De Garoto hahahahahaha

  2. Haha, espírito de pobre mesmo, esse rapaz. Tive professores de História ótimos em meu ensino colegial, que me ensinaram algo que levo para a vida toda: não existe cultuar inferior ou superior a outra. existem culturas diferentes em um mesmo espaço. O funk também é cultura. Merece respeito. E divulgação.
    Abraços.

  3. “Como assim você não tem um MC Guimê aí?” hahahaha
    Só pra constar, eu sou louca no MC Guimê e não tenho vergonha de admitir isso,
    e por isso eu fiquei muito feliz quando eu li essa frase, e dei boas gargalhadas não só por isso, mais pelo texto todo.. hahaha
    Aline, você é demais, sério meu! <3

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