5. Kevin, o hippie


Atravessei a rua correndo, num drible ousado em faróis abertos, carros apressados e os gritos irritados de guardas de trânsito de plantão. Eu fugia de uma multidão que saía de um show num sábado à noite. Eram vinte e sete mil pessoas, sendo que metade dessas deveriam estar, no mínimo, felizes demais pra se importar com o engarrafamento que se formava na avenida principal.

Numa esquina, ele: sujo, de chinelo e com seus dreads levemente bagunçados (como se existissem dreads “penteados”). Assim que cruzamos olhares, prometi que não me renderia, mais uma vez, a conversas com estranhos. Eu não pararia ali, no meio daquela muvuca, por nada nesse mundo. Eu não seria protagonista de outra cena dessas. Eu não contaria no almoço no bandejão que, dessa vez, eu bati um papo com um hippie no meio da rua. Eu não teria essa história… E eu não consegui cumprir essa promessa, claro.

O nome verdadeiro dele era Rodrigo, mas o artístico era Kevin. Segundo ele, “qué vim, vem. não qué, vai”. Quando disse ao Kevin que estava atrasada, ele piscou devagar e falou que “andaria comigo”. E ele veio, deixando sua vitrininha de bugingangas para trás. “Só não vai muito longe porque senão roubam minhas coisas”, disse, bem tranquilo. E Kevin me comoveu ao ponto de me fazer parar de andar e ouví-lo.

“Você gosta de estrelinha, de florzinha ou de coraçãozinho?”, me perguntou, sorrindo. Meu cérebro gritava um “amigo, eu realmente não gosto de nada disso”, mas quando abri a boca, a resposta veio diferente: “Gosto de florzinhas”, eu disse. Kevin então pediu 60 “segundinhos” e eu o dei esses 60 “segundinhos”. Enquanto analisava tudo – desde seu rosto até a cara de choque das pessoas ao nosso redor -, Kevin coordenava um alicate, alguns fios de arame de cobre e me fazia um anel.

De perto, a barba não feita dele pouco cobria suas expressões. Kevin tinha, no máximo, 26 anos e deixava claro ali todas as suas angústias. Os olhares atentos – e de dó – das outras pessoas me incomodavam. Pra elas, era como se eu estivesse pedindo para ser assaltada, como se fizesse algo muito errado. Essa condenação me deu pena… Não do Kevin, mas delas mesmo.

Voltei a me concentrar no hippie Kevin. Ele vestia uma blusa preta com algo como “New York to San Francisco” escrito em letras medianas. Mais uma vez, meu inconsciente cuspiu uma frase. “Gostei da tua blusa. San Francisco, né?”. O Kevin continuou fazendo o meu anel de florzinha de arame, mas levantou brevemente a cabeça e revelou: “Viajei esse Brasil inteiro, mas nada de San pra mim”.

Mas eu não estava contente: mais uma vez, soltei uma daquelas minhas perguntas curiosas. “Qual o melhor lugar que você já esteve?”, eu falei, baixinho. A resposta, apesar de simples, me surpreendeu: “Aqui. O melhor lugar do mundo é aqui e agora”. Ele sorriu grande e apertou o anel, já pronto, no meu dedo.

Meio abalada, por algum motivo que nem eu sabia naquela hora, resolvi terminar o papo com um “tenho que ir” e um “a gente se vê por aí”. Kevin apertou minha mão e disse: “A gente nunca mais vai se ver, mas foi um prazer te conhecer”.

Dei um tapinha nas costas dele, sorri e saí andando. Até nunca mais, Kevin.

14 thoughts on “5. Kevin, o hippie

  1. to apaixonada por essa história, apaixonante e super delicada. to super tocada por ela, =)) você escreve muito bem, vou acompanhar sempre seu blog agora. amei. beijos

  2. Bom, em primeiro lugar, Adorei a ideia do blog. De verdade! E em segundo, li todos os posts e já to ansiosa por outros!
    Ps: essa até agora foi a minha preferida =)
    Parabéns!

  3. Ai, esses hippies. Uma vez conheci uns três que ficavam na frente do barzinho da faculdade, tomamos cerveja juntos e fiquei gamadinha em um, que também me deu um anel de araminho e falou pra eu fazer um desejo…Realmente,nunca mais nos encontramos….

  4. Isso já aconteceu comigo! Bati altos papos com o hippie (do qual o nome me fugiu), que me parou porque eu tava usando uma blusa do Gof of War enorme, um short jeans detonado e um all star vermelho bem velho. Contou que era de São Paulo, e que queria ligar pra mãe dele… O meu anel de estrelinha tá por aí!

  5. Nossa! Encontrei o seu blog por acaso e tô amando ele! Suas histórias são incríveis você é uma ótima escritora! Já pensou em fazer do seu blog um livro? Eu com certeza o compraria!

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