14. Michael, o alemão que iria até Marte por vodka


Demorou bastante, mas quando me dei conta, descia um beco estreito e escuro, às 0h53 da madrugada, dançando uma música eletrônica bastante irritante ao lado do Michael. Aconteceu durante uma festa de alemães e suíços num lugar mais afastado de Santa Barbara, na Califórnia, onde morei por alguns meses. O tal get together de que as minhas roommates tanto falavam ficava numa estrada no topo de uma montanha. A vista era estonteante, apesar da escuridão assustadora. De um lado o mar, do outro a cidade. E a gente bem no meio, curtindo Bacardis, Smirnoffs e tequilas servidas em copos de plástico vermelhos. Tudo isso ao som de ‘Hot’n’Cold’, da Katy Perry.

Lembro de pouca coisa que aconteceu naquele dia. Uma delas é do Michael. O loiro baixinho de cílios quase transparentes era da Alemanha e um dos únicos na nossa escola de inglês que tinha 100% de “attendance”. O que isso significava? Que ele nunca faltava às aulas. Michael era nerd, mas fofo, engraçado e louco, bem louquinho. Na festa, ele veio me contar que a bebida havia acabado. “Como assim a bebida acabou? Não pode! Vou comprar mais”, disse ele, indignado. O detalhe: na época, ele tinha só 20 anos e nos Estados Unidos só se pode comprar bebida alcóolica com 21 ou mais.

Como eu já também não estava no meu melhor estado, topei encarar 10 minutos descendo e 10 minutos subindo uma ladeira numa boa. Era a adulta mais sóbria do grupo naquele dia e sabia que lá embaixo, no pézinho da montanha, tinha uma liquor store enorme pra satisfazer toda a vontade do meu amigo alemão de deixar as pessoas da festa ainda mais altas.

Saímos de casa cambaleando. Descemos um beco enorme, sem calçada. Andamos na rua mesmo, conversando e cantando, e chegamos lá só para descobrir que a loja fechada. Michael parecia não acreditar no que via. Como assim uma liquor store fechada em pleno sábado à noite?  Como bom alemão, ele não aceitou voltar para a houseparty sem as bebidas. “Vamos andar mais um pouquinho pra lá que a gente encontra um táxi e sai para comprar”, disse ele, bem confiante. E eu fui.

Estávamos numa estrada, dessa vez muito maior. Carros passavam pra lá e pra cá iluminando os nossos rostos. Na faixa das bicicletas, ciclistas estavam com medo. Medo de nós dois, que andávamos rapidamente na pista deles. Só depois de alguns metros é que paramos na frente de um estacionamento enorme. Esperamos 5 minutinhos e lá veio um carro. O Michael começou a acenar e o americano gordinho, tatuado e simpático de dentro do veúculo abaixou os vidros.

– “Ei, você pode pedir uma táxi pra gente? Esquecemos o celular em casa e não conseguimos voltar”, disse o Michael, com sotaque carregado.

“Claro, cara. Só um minuto”, disse o gordinho, que se chamava Steve. Tirou o celular do bolso, discou um número e falou com um taxista. “Você ainda está trabalhando, amigo? Pode vir buscar alguém aqui na Calle Real, em frente ao Blue Skies?”, perguntou. Com a resposta positiva, nos falou para esperar e tomarmos cuidado. Mas cuidado? O que exatamente ele queria dizer com isso? Estávamos em Santa Barbara. Lá, era mais fácil ser comido por um coiote do que ser assassinado por um humano.

Esperamos exatamente 15 minutos até que o táxi chegou. Por coincidência, o taxista amigo do gordinho era o mesmo que me salvava depois de todas as festas com bebida liberada. Fisicamente, ele era parecido com o Richard Gere. Curtia rock das antigas e tinha a voz calma, calma, calma. Diria até sexy. O Ron, como se chamava (espere post sobre ele em breve), nos levou em duas lojas de bebidas diferentes. Na primeira, o Michael, idiota, entrou comigo. E por lá, se você entra com alguém para comprar bebida alcóolica, a pessoa também tem que ser maior de idade. Não rolou.

Fomos mais longe ainda e o taxímetro rodando – já dava mais de US$ 60. Praticamente voltamos para a casa onde eu morava e entramos num mercado gigante perto da estação de ônibus, única da cidade. Dessa vez, entrei sem o Michael. Quando cheguei no caixa, com aquela garrafa gigante de vodka, a moça disse que não aceitava minha identidade brasileira. Pensei em vários palavrões pra gritar na cara dela naquele dia, mas ela não tinha culpa. Saí.

O Michael abriu a porta do táxi com cara de felicidade, mas se desesperou quando eu disse que não aceitaram o meu RG. Parecia que ia chorar. Cansado de andar com a gente pela cidade, o motorista Richard Gere soltou um “que bebida vocês querem?” que me deixou chocada, mas não surpreendeu Michael.

– “Vodka!”, disse o alemão, rapidamente.

Expliquei que só precisávamos de uma garrafa porque era aniversário de uma amiga nossa. Ron voltou a falar:

– “Eu tenho uma garrafa de vodka em casa. Podemos passar lá e pegar. Eu dou para vocês, ok? Não cobro nada!”, disse o taxista.

E foi nesse momento que eu me senti a pessoa mais confusa do mundo. Várias situações passaram pela minha cabeça. Eu conhecia o taxista desde que cheguei em Santa Barbara e sabia que ele era confiável, mas e se ele nos levasse pra casa dele e nos esquartejasse, por exemplo? E se ele, ao invés de ir pra casa dele, fosse pra um posto policial nos denunciar? E se ele fosse um pervertido? Mas tudo aconteceu tão rápido que eu nem senti tanto medo e insegurança. Chegamos ao apartamento do Ron e ele entrou sozinho. Pegou a garrafa, nos deu e pronto. Nos levou de volta para a houseparty mas, quando chegamos, a festa já havia acabado.

E foi assim, numa noite de loucuras e coincidências que eu comecei a pensar, mais uma vez, que voltar para o Brasil podia ser um erro. Gosto de como as pessoas não gostam de te passar para atrás lá ’em cima’. Gosto de poder confiar nas pessoas. Gosto das Sarahs, dos gordinhos dos estacionamentos, dos motoristas de táxi estilo Richard Gere. Gosto mesmo.

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