102. Lucas, o médico que me passou a receita da felicidade

 Se eu pudesse definir aquela quarta-feira de setembro, início do mês em que eu completo anos, com apenas uma palavra, eu provavelmente usaria “atípica”. Era 6h30 da manhã e o meu despertador ainda não havia tocado. Era 8h30 da manhã e eu ainda não havia saído da cama. Era 10h30 e eu não estava na mesma correria e tensão em que me encontrava há anos.

O relógio entrou na casa das 11h de mansinho e eu me vi andando por uma Avenida Paulista agitada, mas sem a (sempre presente) ansiedade louca de chegar logo a algum lugar. A verdade é que eu me sentia “do lado de fora” do mundo real pela primeira vez em muito tempo. Eu sentia, com uma intensidade monstra, o sol na cara e a claridade me invadindo. Eu olhava, curiosa e até mesmo emocionada, os vendedores ambulantes com seus carrinhos lotados de jabuticabas e as velhinhas andando lentamente rumo aos hospitais – provavelmente para fazerem seus exames de rotina. Era um dia “atípico” não só por todas essas pílulas de realidade, mas porque, depois de 8 anos de trabalho intenso, eu não era “igual” a todos os meus amigos. Depois de 8 anos de carreira no jornalismo, aquela era a minha primeira vez desempregada. É. Desempregada. E aquela quarta-feira também era o dia em que eu faria o meu exame demissional.

Entrei num prédio simples ao lado da Rua Consolação por volta das 11h10. Dei meu nome na recepção e informei a uma atendente novinha que eu estava ali para o meu desligamento. Depois de fazer cara de dó pra mim, ela me pediu para aguardar na sala de espera. De sua mesa, me olhou mais algumas vezes, provavelmente para se certificar que eu não cairia no choro.

Sentei ao lado de uma moça com dois filhos pequenos e comecei a pensar em como eu entendia muito bem o olhar da recepcionista pra mim. O Brasil em crise, a taxa de desemprego bizarramente alta, as contas cada vez mais esmagadoras… Ficar sem emprego naquele momento só podia ser uma desvantagem muito, mas muito grande.

Agradeci mentalmente a preocupação da garota e logo pensei em como não trabalhar – nem que seja só por um tempo, sei lá, até você “voltar a ser quem era” – é algo visto de uma maneira muito ruim na nossa sociedade. Minha mãe mesmo, quando liguei para dizer que meu contrato havia sido terminado, não sabia como agir:
– “Mas e agora, o que você vai fazer?”, foi a primeira pergunta dela.

– “Eu não vou fazer nada, mãe. Vou só ficar aqui como estou, mas mais feliz e menos desesperada em atingir metas humanamente impossíveis. Talvez esse seja um momento bom para um sabático, uma viagem de volta ao mundo…”, eu respondi.

Lembro que, neste dia, ela respirou fundo e disse que “tudo bem”, e que ela me apoiaria qualquer fosse a minha decisão.

Minha mãe, porém, não foi a única a me perguntar, assim, logo de cara, o que eu faria dali pra frente. O pai do meu namorado, os meus amigos mais próximos e até os colegas mais afastados… Todos eles não entendiam o motivo de eu estar tão tranquila e “sem planos futuros”. Que doida a vida, né? Acho legal ter planos, mas também é bem legal não ter. Acho legal saber se amanhã vai fazer sol ou não, mas mais legal ainda é ser surpreendido por uma chuvinha de verão gostosa depois de um dia batendo os 45 graus. Eu não queria encher minha cabeça com novos planos que me trariam mil ~dinheiros~, mas menos zero satisfação pessoal.

A moça ao meu lado atrapalhou meus pensamentos. Ao telefone, ela gritava com o marido:

– “Por que você não pegou as crianças na escola, caralho? Eu te avisei que tinha essa porra de exame hoje!”, ela disse. Me assustei com o palavreado. Ela parecia tão tranquila! Ri internamente. As aparências realmente enganam.

Cinco minutos depois do barraco ao telefone, a moça, que se chamava Shirlei, foi chamada por um médico moreno, com cabelo de colírio da CAPRICHO. Era bem novinho, tinha no máximo 27 anos, e um sorriso branquíssimo. Shirlei entrou na sala 1, onde ele atendia, puxando as crianças com pouco cuidado e muito força pelo braço. Eu voltei a pensar na vida e a observar tudo ao meu redor, ainda perplexa com a quantidade de detalhes que eu perdia por causa do cansaço que sentia após passar o dia todo estressada.

A mulher saiu da sala cerca de 10 minutos depois e o médico novinho reapareceu na porta para chamar outra “paciente”, desta vez uma mulher bem mais velha, com mãos bastante calejadas. Liguei meu celular para me distrair e comecei a jogar uma partida de Zookeeper, jogo que virou, há um ano, a minha maior obsessão.

Nada de chamarem meu nome. Dei início a segunda partida, depois a terceira…

– “Senhora Aline Vieira”, chamou o médico após abrir a porta, enquanto eu iniciava a quarta partida do Zookeeper.

– “Droga”, pensei. Não tinha pausa no jogo. Ia cair no ranking. Era um chefão. Perderia pontos para meu arqui-rival no jogo. Percebi o quanto aquele pensamento era pequeno (afinal, era só um jogo, vai!) e sorri por ser tão tonta.

Entrei na sala quase rindo e fui percebida pelo médico, que se chamava Lucas.

– “Então vamos fazer seu exame admissional, né, Aline? Pra estar com esse sorrisão, só pode ser isso!”, disse ele, antes de olhar na minha ficha. Continuei sorrindo e esperando ele identificar o erro. “Ah, é demissional!”, disse, já mudando totalmente a fisionomia.

– “Mas é esse mesmo o motivo do meu sorriso”, eu ri.

O Lucas disse o que todo mundo me disse desde que sai da empresa: “seus olhos estão brilhando, então deve mesmo ser felicidade”. Meus olhos realmente brilhavam e o Lucas, sem perguntar exatamente o que me deixava tão feliz naquela situação, começou a contar, em meio a perguntas rápidas do demissional (“Você fez alguma cirurgia nos últimos meses? Qual foi a data da sua última menstruação?”) que era casado com uma dentista.

– “Vou te contar a história dela. Ela sempre foi a melhor da sala. Aluna número 1 em tudo. Sempre tirou nota boa, sempre se destacou no trabalho. Ela trabalhava num consultório há 9 anos e começou a perceber que, apesar do ótimo salário, aquele lugar já não a fazia mais feliz. Ela não pedia demissão, mas virou outra pessoa. Não era a namorada, noiva e esposa que eu conheci. Estava tão difícil conviver com a infelicidade dela que eu até pensei em “demiti-la” da minha vida”, brincou.

Eu ri e pedi pra que ele continuasse a história – afinal, eu amo histórias, ainda mais as que parecem que têm um final feliz.

– “Eu dizia pra ela que a felicidade estava logo ali. Que era só ela desencanar das coisas ruins e descobrir outras coisas que a fizessem muito mais feliz. Pedi para ela deixar o trabalho caso aquilo realmente a fizesse infeliz, e você não sabe, Aline! Não falei que ela era a melhor da sala? Ela usou essa inteligência dela e passou em primeiro num concurso de escrivã. Ela então pediu demissão, assumiu a vaga, que também paga muito bem, e agora é outra pessoa. Está feliz, sorridente, bem humorada. Nada a tira do sério”, completou.

Continuei esperando o desfecho do Lucas.

– “Sabe o que acontece? A gente foca demais no dinheiro e a verdade é que não tem dinheiro que compre paz. Ela achou que ia terminar a vida na carreira que escolheu na faculdade – e talvez até termine, mas não era naquele consultório que ela seria feliz. E o que ela tirou dos momentos de infelicidade foi que ela sempre pode procurar novas coisas que a dêem prazer”, disse.

Eu concordei com o Lucas e logo lembrei de tudo o que eu falava para a minha mãe toda vez que, chateada, ligava para casa. Agora, ela – e a esposa do Lucas! –  entenderam: não tem dinheiro no mundo que faça você levantar sorrindo da sua cama todos os dias. E (digo mais!): o que é bom para os outros, não precisa necessariamente ser bom para você também. A vida segue – e segue linda, mais incrível do que nunca. A nossa passagem por aqui é feita de começos e de finais. E não tem nada melhor do que saber reconhecer quando uma história chega ao fim. Desapegue do que só faz mal. Garanto uma vida 100% melhor. :)

5 thoughts on “102. Lucas, o médico que me passou a receita da felicidade

  1. Eu estou a uns 2 meses pra ler esse texto e nunca o faço. Esse mês que eu to numa crise meio chata relacionada a dinheiro eu li e tudo pareceu se encaixar perfeitamente. Eu simplesmente amei ♥

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