110. Maria Aparecida, a senhorinha dos cabelos brancos mais lindos do prédio

Eu mal havia aberto os olhos naquela terça de manhã quando ela apareceu, se fazendo sentir a cada milímetro de movimento. Era diferente das outras: latejava forte no canto esquerdo da testa, bem em cima do olho – diferente dos dias em que vinha de mansinho na parte detrás da cabeça. Eu percebi que mover-se na cama, até mesmo para mudar de posição ou espreguiçar, não seria fácil.

Lembrei que estava de folga e isso já foi um alívio enorme. 

Eu tinha o dia todo em casa e poderia, assim, absorver tudo o que eu havia ouvido na aula de História da Literatura que havia tido na noite anterior. Naquele momento, somente uma coisa era maior do que a minha dor de cabeça: a crescente certeza de que estava muito, mas muito lascada.

Em quatro horas de aula, eu contei: foram 37 livros citados pela professora. Eloquente e apaixonada pelo tema que lecionava, a mulher teve a pachorra de citar a trajetória detalhada de pelo menos uns 5 personagens de clássicos. Eu já me preocupava (e muito!) em memorizar tudo aquilo. Memorizar, aliás, era uma tarefa difícil para alguém que trabalhava lendo ao menos uns (o quê?) 10 mil Tweets por dia. Eu já não conseguia mais lembrar de nomes de pessoas, não conseguia gravar informações básicas e, pior, não conseguia manter na minha cabeça nem coisas simples, como palavras que usei a vida inteira.

“Como mesmo é o nome daquela palavra para usar quando alguém morre e deixa algo pra outra?”, eu perguntei, uma vez, aos meus colegas.

“Herança, você quer dizer?”, uma respondeu.

“Sim, era herança. Brigada!”

“E daquela outra palavra para quando você quer dizer que alguém não confia fácil nos outros?”

“Você quer dizer desconfiada?”

“Isso!!!”

Passei a manhã daquela terça de dor de cabeça na Amazon.com.br, selecionando e comprando alguns livros citados pela professora. Preferi fazer aquilo algumas horas depois da aula porque sabia que só se fizesse logo é que ia me recordar de todas as referências citadas em aula.

“Vou pegar esse aqui, da Virginia Woolf, e esse outro aqui, do Milan Kundera”

O interfone toca. É o arroz frito com carne que pedi na promoção 50% off do iFood no PF Changs. Eu poderia comer só esse arroz pelo resto da minha vida. Mesmo. Não, sério, MESMO!

Desci. Quando voltava para o apartamento, encontrei dona Maria Aparecida, uma senhorinha tão, mas tão brilhante por fora que até me chocava nunca tê-la vista no prédio. Isso só reforçava a minha teoria de que, em anos morando no mesmo prédio, eu não conhecia absolutamente ninguém ao meu redor. Não sabia o nome da porteira, nem da moça gentil que sempre passa removedor no meu corredor (sempre quis dizer pra ela que sou alérgica e perguntar se podiam comprar removedor sem cheiro, mas nunca o fiz porque… não sei seu nome). Ela, a Maria Aparecida, me esperou para entrarmos juntas no elevador. Eu estava sem lentes de contato e só depois de um tempo vi o quanto ela se destacava – até mesmo num elevador. Geralmente me seguro nos elogios para pessoas desconhecidas para não gerar um certo espanto, mas quando a vi melhor, de pertinho, foi automático:

“Nossa, a senhora é maravilhosa! Como faz para deixar esse cabelo tão lindo? É o cabelo branco mais lindo que eu já vi na vida”

Ela começou a rir na mesma hora, com os olhos bastante iluminados. Tímida, porém muito feliz, me disse que havia parado de pintar o cabelo há pouco tempo – há exatos 8 anos. “Estraga demais o cabelo e tenho 89 anos. Uma hora vou ter que assumir a minha idade”.

Maria Aparecida começou a ter esses cabelos brancos há 18 anos, diz ela. “Os meus já estão por toda parte. Isso porque tenho só 30 anos”, eu disse. Inclusive, na minha agenda compartilhada com meu namorado já temos até horário para a caça aos fios descoloridos.

Eu perguntei o que ela passava no cabelo – e ela disse somente que usava shampoo e condicionador.

O quinto andar chegou e eu tive que descer. O andar dela era só o 9. Dei tchau e voltei a elogiar o cabelo branco.

Uma semana depois, enquanto voltava da minha aula de natação ao meio dia, lá estava a dona Maria Aparecida de novo – com o mesmo cabelo sedoso e incrível. Estava tão esplêndida quanto da primeira vez que a vi e lembrou bem de mim. Contou que estava voltando da casa de um casal de amigos.

“Eu estava ajudando um amigo que é professor de letras há anos na USP com o livro que ele vai lançar, sobre a origem das gírias”

O caminho até o quinto andar foi breve, novamente, mas disse para a dona Maria Aparecida que queria muito ver o livro quando fosse lançado. Ela disse que vai me ligar. Vou ficar esperando.

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