19. O cara que amava mais a Carla do que ele próprio


Entrei no trem quase lotado na Vila Olímpia numa quarta-feira de bastante chuva. Ouvia Norah Jones no último volume, como de costume, pra ver se o fim do dia ficava um pouco mais alegre do que a canseira maçante em que eu me enfiei nas últimas semanas. Sem esperanças de pegar um lugar sentada, fiquei de pé ao lado de um branquinho baixinho que vestia social.

As portas do trem fecharam e saímos destino a Osasco. Logo nos primeiros segundos percebi que todo mundo olhava, atento, o tal rapaz. Resolvi abaixar o volume da minha música e prestar atenção no que acontecia. ‘Depois a gente conversa. Tá todo mundo me olhando’, disse ele, com o celular na orelha, os olhos aguados e o olhar fixado no chão. Curiosa, abaixei mais ainda o som.

“Você precisa usar esse tempo para você. Deixar a vida consertar tudo”, dizia o rapaz, tentando ser o mais político possível, mas visivelmente abalado. Do outro lado da linha estava Carla, a ex-namorada que ele afirmava a todo momento ter sido ‘um grande problema na vida dele’. Apesar de ter feito alguma coisa muito horrível para o moço ao meu lado, a mulher parecia não deixar ele desligar o telefone. Queria porque queria que ele parasse de a castigar e voltasse para ela. Então, no meio do trem, ele disse:

– Vou tentar resumir essa história pra você, Carla. Você me feriu muito. Você não sabe o quanto. Meu problema foi ter amado mais você do que eu. Hoje, depois que tudo o que eu passei ao seu lado, eu amadureci. Dou mais valor pra mim. Faça o mesmo com você.

Pensei que o cara que amava mais a Carla do que ele próprio fosse, depois do discurso, desligar na cara dela, mas pacientemente ele a ouviu, só pedindo pra ela aceitar que o tempo cura tudo.

Chegamos em Pinheiros, onde eu sempre desço. O cara que amava mais a Carla do que ele próprio ainda não havia batido o telefone na cara dela – e não acho que o faria. Na hora de sair do trem, ele levantou o rosto, que estava todo vermelho, e me pediu licença. Sorri de leve e o deixei passar.

Vim pra casa pensando em pessoas que amam outras pessoas mais do que amam elas mesmas. Continuo pensando no que o cara que amava mais a Carla do que ele próprio disse lá no trem. Nunca consegui amar assim. Não acho que conseguirei.

3 thoughts on “19. O cara que amava mais a Carla do que ele próprio

  1. Todos conseguem basta viver sem esse tipo de preocupação que quando menos esperarmos ele aparece mas se ele aparecer e for um mané esquece. e tenta de novo.

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