34. O cara com quem eu não completei o pensamento


O dia definitivamente não havia começado bem.
Depois de uma noite inteira sem dormir por causa de uma dor de ouvido insuportável, decidi que era hora de ir ao médico. Pronto socorro sempre foi uma coisa normal na minha vida (valeu, baixa imunidade!), mas mesmo agora, uma adulta, faço de tudo para adiar cada vez mais as consultas. Desta vez, achei que três dias foram o suficiente.

Acordei às 8:15 e cheguei no hospital às 8:30. O bom de morar em uma rua com vários deles é exatamente isso: saiu de casa, está socorrida. Fiz minha fichinha com a recepcionista baixinha do cabelo chanel, coloquei a pulseira de identificação verde – que até uma espécie de código de barras tem – e esperei que a enfermeira me chamasse para medir meus sinais vitais.

Me ditrai na sala de espera pensando em como eu realmente achava legal que, ao invés de vestirem branco, as enfermeiras do hospital vestiam rosa. ‘Ia ficar ainda mais legal se nessa roupa tivesse um coração’, eu viajei. ‘Tudo que um cara que está doente quer ver é algo pra lhe fazer sorrir. Se visse um coração na roupa dela,  não daria outra’, continuei, com a cabeça longe, longe… Até que uma voz interrompeu meus pensamentos:

– Cansei dessa história. Se realmente amasse o cara, teria ficado com ele, disse, no meio da sala de espera, um gordinho de calça e camisa cinzas e com um rosto que não me era estranho.

Eu até tentei, mas não soube identificar se o tom da voz mostrava raiva ou não. Ele continuou, perguntando pra mim, única pessoa que esperava para ser atendida:

– ‘Você conhecia esse cara?’

Esse cara de quem o homem falava era o Chorão. Na sala de espera do hospital, a TV estava ligada na Record, que exibia as palavras da estilista Graziela Gonçalves, ex-mulher do vocalista do Charlie Brown Jr, que foi encontrado morto em seu apartamento em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, na madrugada de quarta.

– ‘Opa se conhecia! Ele fez parte da minha adolescência inteira’, eu disse.

Era verdade e eu nunca tive vergonha de admitir. O Chorão era um cara que eu admirava. Fui em pelo menos três shows dele, sendo um no Rio Grande do Sul, e posso garantir que a energia que ele passava no palco se comparava a de poucos artistas – palavra de quem passou 4 anos trabalhando com cobertura de shows praticamente todos os finais de semana.

O homem do hospital parecia chocado que eu conhecia e, mais, idolatrava tanto o Chorão. Natural, eu pensei. O gordinho já beirava bem seus 50 anos e, certamente, não foi a geração dele que o cara marcou. Ele então começou a me contar que conhecia o pai do cantor. Quando eu ia dizer que o Chorão perdeu o pai ainda jovem, o celular dele, que parecia vir diretamente dos anos 90, tocou. O gordinho apertou o botão de atender e falou ‘alô’ repetidas vezes, sem parecer ouvir nada que vinha do outro lado da linha, mas sabendo quem era.

– ‘Minha filha, minha bebê, não consigo te ouvir, meu amor’, disse carinhosamente.

Desligou o telefone e comentou comigo que a filha dele estava preocupadíssima com o marido, que estava com ele no hopital. ‘Teve problema de estômago e eu o trouxe aqui’, disse o gordinho, que logo voltou a atender o telefonema.

– Minha filha, já disse que não precisa se preocupar com ele. Eu vou resolver tudo aqui. Ele está descansando agora porque não dormiu a noite toda. Não, não precisa vir aqui. Fica tranquila que estou com ele.

Convencida de que tudo ficaria bem, a filha desligou o telefone. Bem na hora que me preparei para voltar ao papo sobre o Chorão, a enfermeira chamou meu nome alto na sala de espera. ‘Até mais’, eu disse. Faltou só dizer ao homem que eu gostaria de ter terminado minha declaração de amor ao Chorão e, também, de elogiá-lo por seu um pai tão bom pra filha dele. Era Dia Internacional da Mulher e aquela ligação tranquilizadora do pai deve ter sido uma das melhores coisas do dia dela.

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