O mapa da tela touch screen do avião indicava que ainda passávamos por Guadalajara, no México. Depois de um voo de quase 7 horas até o Panamá e de mais algum tempo dentro de uma segunda aeronave, só faltavam mais três horinhas. Três horas para eu voltar a me encantar com aquelas palmeiras lindas e aquele céu azulzinho da Califórnia. Três horas para eu lembrar o quanto Hollywood me dá vontade de escrever para a TV e o quanto Santa Monica me tira os suspiros mais apaixonados. Três horas para eu querer desesperadamente casar com um skatista e morar em Venice. Três horas para eu começar a planejar aquele abraço apertado em uma das melhores amigas que eu fiz na vida e contar-lhe em detalhes como foram esses meus últimos três anos. A minha ansiedade, assim como a turbulência intensa por causa da região montanhosa, mal me deixavam dormir… E deve ter sido por isso que comecei a interagir com Luz Vacaflor.
Vacaflor devia ter lá seus 45 anos, apesar de aparentar um pouco mais. Vestia uma saia preta, camisa escura, cachecol roxo e usava um perfume doce demais, desses que fazem uma alérgica como eu espirrar sem parar por alguns segundos. No voo 472, meu assento era o 20E. Sentada na janela estava uma amiga, enquanto no corredor, ela. ‘Eita, como eu odeio ficar no meio’, repeti algumas vezes antes de me acomodar. Assim que afivelei o cinto, Luz pegou seu cobertorzinho minúsculo dado na classe econômica e cobriu rapidamente as pernas. Antes da decolagem, ficou paradinha por alguns minutos olhando para o nada… Jurei que ela estava rezando. Só ‘acordou’ quando me viu colocando o meu fone na saída da telinha da poltrona. Vacaflor tentou fazer o mesmo com o dela, mas não conseguiu. Ela não percebeu que aquele modelo não era compatível e, só alguns minutos depois, quando o aeromoço distribuiu os fios novos, é que ela se tocou.
Como o caminho era longo, coloquei ‘Pitch Perfect’, um dos meus musicais favoritos, para rodar. Não que eu tenha durado muito tempo com os olhos abertos. Voo diurno me deixa ainda mais grogue do que voo noturno. Só sei mesmo que acordei alguns minutos depois e até tentei dormir novamente, mas algo me distraía. Na poltrona ao lado, ela, a Vacaflor, estava toda entretida com a TV do assento. Clicou em juegos, assim mesmo em espanhol, e arriscou um Bejeweled. Parecia ser a primeira vez de Vaca no joguinho e, por isso, ela encontrou dificuldade em entendê-lo. A boliviana de La Paz, como mostrava seu passaporte, clicava em todas as pedrinhas da tela tentando conseguir pontos, mas nada funcionava. Eu tentava focar na minha tela, mas vê-la sofrendo para captar que era só juntar 3 ou 4 bloquinhos da mesma cor me deixava aflita. Passei pelo menos 10 minutos observando-a e a vontade de clicar na tela dela só crescia. Minha perna balançava, meu olho girava e minha mão já estava a ponto de não responder o que meu cérebro pedia. “Não ajuda, Aline, não ajuda”, eu falava pra eu mesma. Mas a senhorinha ficava tão chateada a cada novo bloco que não acertava que eu tive certeza que deveria intervir.
– ‘Tienes que juntar tres o cuatro blocos de la misma color, like this here‘, eu disse, com meu espanhol sofrido misturado com inglês, tocando na tela dela.
– ‘Tres o cuatro? Ah, ok’, Vacaflor disse, parecendo entender tudo.
Antes de voltar a me concentrar no meu filme, dei alguns exemplos para a Luz, que ficava toda animada quando recebia os pontinhos, e deixei-a jogar. Mas a brincadeira não durou muito tempo. Mais uma vez, ela parecia travada. Não conseguia entender que o Bejeweled era mesmo só isso: juntar quadradinhos e bolinhas da mesma cor e ganhar pontos. Misturava branco com verde e vermelho com roxo e parecia indignada por não funcionar. Bufava, coçava a testa e me deixava tensa.
Resolvi colocar outro filme para tocar, um em que o Timberlake ganha várias horas de vida, e deixei que ela se virasse. Antes de desembarcar do avião, passei um tempo pensando que minha mãe e minha vó também demorariam para captar aquele jogo…
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