74. O clone de ‘Family Guy’ fã de Lily Allen

Era mais um dia importante na minha vida. E eu tentava de todas as maneiras não me atrasar. Eu confesso: apesar de virginiana-louca-por-arrumação-e-coisas-certinhas, eu tenho um problema grave com horários. Nunca chego na hora combinada, dou a desculpa de ‘estou no meio do caminho’ quando nem saí de casa e meu ’em 5 estou pronta’ geralmente significa ‘daqui meia hora começo a me arrumar’. Isso só não se torna um problema real na minha vida porque as pessoas com quem eu me relaciono atualmente conseguem ser ainda mais ‘canal 14’ do que eu. Em novembro de 2009, no dia da minha entrevista de visto de estudante, eu juro que fiz de tudo para parecer comprometida e séria demais.

Naquela manhã, eu tinha também outra missão: a de ter um encontro de “negócios” com um tal do Chico. O Chico era um cara que agilizava uns documentos com a despachante responsável pelo meu agendamento. Sem entender bem o que era o lugar onde eu estava, desci do carro, entrei na primeira rua que enxerguei e perguntei a dois caras que estavam parados observando o movimento da fila se eles conheciam o Chico.

– “Ele acabou de ser preso. A polícia saiu agora com ele no camburão”, disse o mais velho, todo sério. Era uma brincadeira. Jeitinho brasileiro de misturar as coisas. É o Homem Cordial, aquele do qual Sergio Buarque de Holanda sempre falou.

Tensa do jeito que eu estava, nem deu pra rir da situação. Uma quase lágrima (petrificada?) estava prestes a correr pelo meu rosto. Mas não deu nem tempo. O Chico me levou para uma salinha mal iluminada, no primeiro andar de um pequeno prédio mal pintado, me passou os papéis e me deu as coordenadas. Em 2009, quando a história toda aconteceu, a burocracia para esse tipo de documento costumava ser bem maior. O próximo passo era, então, me juntar aos outros até então reféns de um futuro desconhecido e tentar a sorte.

Filas quilométricas, bebês chorando sem parar, mães gritando com os filhos, velhinhos sem conseguir enxergar os painéis… Se eu não conhecesse a realidade do Consulado Americano no Brasil, eu até pensaria que aquela era uma sala de refugiados, famintos e desesperados para pegar uma senha e voltar para casa. Lembrei que, mesmo sem visto de entrada, eu já tinha a passagem comprada, e por isso tentei me acalmar. Fiquei tranquila quando uma mexicana gritou comigo e zen quando encontrei Family Guy, o meu entrevistador, para o papo decisivo. Ele, que manteve uma expressão de preocupação o tempo inteiro, fez perguntas e pediu documentos…

– “Você vai fazer o que lá? Vai parar estudar mesmo?”, ele perguntou.

Tentei segurar a minha cara de “what the fuck”. Se eu estava pedindo um visto de estudante e já tinha toda a aprovação da escola no exterior, por que aquela pergunta sem noção? É só ver os documentos…

– “Com o que seus pais trabalham?”, ele continuou, após algumas outras perguntas que, pra mim, faziam pouco sentido.

– “Meu pai é taxista e minha mãe professora”, eu disse, o deixando ainda mais tenso. “Meu filho, pelamordedeus,  não quero imigrar”, eu repetia na minha mente.

O clone de Family Guy foi para o lado de dentro da sala com o meu passaporte, voltou coçando a cabeça e continuou trazendo à tona questões aleatórias. Não demorou muito até me perguntar com o que eu trabalhava. Naquele dia, eu tinha numa pastinha várias revistas especiais que tinha feito e várias cartas de recomendações de chefes e conhecidos.

– “Então você é jornalista, é?”, ele perguntou, com ar sarcástico. Eu entendo: ele deveria pensar que eu estava mentindo. Eu era bem mais baixinha e bem mais magrinha do que sou hoje, além de ter cara de uma adolescente de 15 anos. É difícil me levar a sério.

– “Sim, eu sou. Trabalho como repórter de entretenimento numa revista adolescente. Meu trabalho é o de entrevistar celebridades. Eu também escrevo para alguns portais de notícias”, afirmei.

– “Uhm! Então me diz alguns famosos que você já entrevistou”, ele disparou, desconfiado e pronto para me “pegar na mentira”. Calma, eu respondi:

– “Já entrevistei Sean Kingston, Backstreet Boys, Lily Allen…”

Assim que disse Lily Allen, Family Guy me interrompeu, com olhos de felicidade, e disse:

– “Sério que você entrevistou a Lily Allen? Eu sou muito fã da Lily Allen. Seu visto está aprovado. Boa viagem”, ele disse.

E eu saí do prédio sem acreditar que quem me fez ter um visto de estudante foi mesmo é a Lily Allen e não a minha pasta cheia de extratos bancários, reportagens e recomendações.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *