80. Os traficantes que organizavam briga de galo

Sempre acreditei que o último dia de férias em uma cidade deveria ser o mais tranquilo de todos. Conhecer um país novo é, ao meu ver, 95% incrível e 5% estressante. É que fazer esses rolês em aeroportos para ir e voltar dos lugares é cansativo demais. Se locomover até a pê-quê-pê, esperar na fila enorme do check-in, rezar para os céus que a sua bagagem cheia de tranqueiras (que você não vai usar para nada) não exceda o limite… Por esses e outros motivos, acho sempre melhor pegar leve antes de uma viagem. Só que em um dia de 34 graus nas ruas de Cartagena, uma cidadezinha costeira ao norte da Colômbia, era impossível não apelar para uma cervejinha gelada.

Entramos num boteco de frente para uma pracinha a la Paris depois de quase vomitarmos (mesmo!) com a breguice de um bar colombiano que (juro!) juntou todas as tendências de decoração dos anos 60 e colocou no mesmo lugar. Tocava o equivalente colombiano a Sidney Magal e, nas mesas, até flor falsa encharcada em vaso com água rosa choque tinha. Foi por isso que sentar numa mesa de frente para a TV num lugar “normal” em dia de Brasil versus México pelo Mundial de Futebol de 2014 era um grande sonho realizado.

Não demorou muito tempo para a tarde, que parecia ser só mais uma tranquila na cidade mais cobiçada na costa colombiana, virar uma espécie de “Se Beber Não Case”. Depois de algumas cervejas e do empate consolidado, virei para a mesa de trás e dei de cara com o Álvaro, um guia turístico de uns 60 anos alucinado pelo Brasil.

“Muy fanático de Brasil”, disse ele ao reconhecer o nosso português. A essa altura, eu também já tinha feito amizade com um brasileiro corintiano que surgiu no caminho para o banheiro cambaleando (a cerveja e os drinks em Cartagena são, realmente, bem baratos!), e com o Dani, o garçom bonitinho e novinho natural de Medellín.

Foi o Álvaro, aliás, que deu o pontapé inicial para surgir uma amizade entre uma amiga e eu, e o Jeff e o Dougie, americanos que tinham acabado de chegar a cidade. Ele disse “esses são da terra do Tio Sam” em espanhol e eu, que já estava mais alegre que Gretchen cantando Ivete, os convidei para tomar uma cerveja na nossa mesa. Os dois eram irmãos e naturais de Chicago, nos Estados Unidos. Fizeram a viagem juntos porque o Dougie, o mais novo, tinha acabado de conseguir um “emprego de gente grande” e queria comemorar a nova vida de adulto pós-faculdade de economia. Papo vem, papo vai, cervejas continuaram passando e o Dani, meu novo garçom favorito no mundo, começou a fazer uma mini-degustação de rum e aguardiente na nossa mesa.

Aquele 17 de junho tinha tudo para ser um dia  ‘somente’ agradável, mas começou a tomar o rumo da loucura extrema quando um rapaz baixinho, de cabelo raspado e óculos Ray-Ban laranja, chegou bem perto da gente. Ele usava o codinome “Gentleman”.

“E aí meninos? Tudo bem?”, ele começou, em inglês. “I have chicken fight”, disse, com um sotaque tão carregado que fez com que a minha amiga tivesse certeza que o que ele oferecia era “chica fight”. Pensei imediatamente no “Uba Uba Uba Ê!”, na banheira do Gugu, e não consegui segurar a risada.

“Chicken fight” é “briga de galo” em inglês. No Brasil, a “brincadeirinha” sem graça é proibida, mas não acho difícil que na Colômbia, um país em que existe até campeonato de futebol de ovelhas (elas vestem camiseta e tudo!), isso funcione como uma diversão real e livre de fiscalização (não que a nossa fiscalização seja lá grande coisa também).

“No no no, no les gusta chicken fight, amigo”, eu disse, roubando momentaneamente os óculos do rosto do Gentleman e dizendo, de forma bem educada e bem humorada, que nós não precisávamos de seus serviços.

“Também vendo marijuana y cocaine si quieras”, Gentleman disse, bem baixinho, antes de ir embora.

A conversa com o Jeff e o Dougie rendeu, mas já era noite e eu precisava ir arrumar as minhas malas, afinal, no dia seguinte enfrentaria ainda mais aeroportos. Quando já tinha pago a conta e estava prestes a ir embora do bar, dei de cara com mais um “oferecedor de serviços ilegais”, mas resolvi me afastar. O outro ‘fora da lei’ de Cartagena era um “enviado especial” de Gentleman para convencer os americanos a comprar ingressos para a briga de galos. Ele era igualmente moreno, baixinho e vestia calça bege. Parecia o Bruno Mars e falava inglês muito bem. Disse que era natural de Nova Iorque.

– “Então garotos, tenho briga de galo, mas também tenho outras coisas boas. Vamos dar uma volta comigo! Custa só 20 dólares para provar a melhor maconha da Colômbia”, eu ouvi, mais de longe, o rapaz dizer ao Jeff e ao Dougie.

Nessa hora, ainda bem alterada, eu resolvi chegar perto para ouvir melhor a conversa. É que, bêbada, eu sou bem mais heroína do que sóbria…

– “Então é você a  “cabeça pensante” desse grupo?”, me perguntou o traficante “camuflado” de amigo. Eu tinha certeza que ele queria me zoar, por eu ser uma mulher, pequena e magrinha. Resolvi responder de forma mais natural possível:

– “Sim, sou eu. Que que tá pegando?”, eu disse, em inglês, ainda sendo bem simpática.

“Vamos dar uma volta comigo pra eu apresentar a melhor droga de Cartagena”, ele disse, em voz obviamente alta demais para o tipo de serviço que ele estava oferecendo.

Lembrei da minha mãe dizendo o quão perigoso era falar com estranhos e, por um momento, até pensei que ia soltar um “CÊ TÁ LOUCO, MERMÃO?” na cara do tal traficante. Me controlei:

“Não, não, não. Os meninos chegaram aqui agora, não sabem nem onde vão ficar. Depois eles procuram você se quiserem”, eu resolvi, deixando os garotos aliviados.

O sósia de Bruno Mars insistiu para que comprássemos algo e eu voltei a dizer que não estávamos interessados. Foi quando ele começou a ficar bravo.

“Você está falando alto demais sobre esse assunto”, ele disse. E eu voltei a esbravejar, meio bêbada:

“Mas meu querido, é você quem está na frente de um bar movimentado falando de vender maconha e cocaína!”

– “Você vai ver se a polícia vier me pegar! Vou mandar ela ir pegar você lá no seu hotel”, o traficante bundão teve a cara de pau de me falar.

Minha cabeça processou aquilo por uns 10 segundos, enquanto eu olhava fixamente para os seus olhos – e ele para os meus com cara de “assusto muito as menininhas”.

“Meu querido”, eu comecei, com calma e com a voz um pouco comprometida por causa das cervejas. “Me diz uma coisa: se a polícia for lá no meu hotel, ela vai achar galinhas na minha mala?”, eu disse, me segurando para não rir. “E maconha? Sou eu que tenho maconha?”, eu perguntei.

O “enviado” do Gentleman me olhou perplexo, mas calmo. Me deu as costas e saiu andando. E eu só fui me ligar que o cara poderia mesmo ser perigoso depois que deixei os americanos sãos e salvos em um hostel. Na chuva fresquinha pós dia quente, andei para os meus aposentos ao fim da Rua Siete Infantes, uma das mais famosas de Cartagena. A polícia nunca me “achou” com galinhas violentas, muito menos com a melhor erva da Colômbia.

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