Eu me lembro de me sentir exatamente como a Hilda. É que, um tempo atrás, eu, vestida extremamente normal se comparada a imensa fila de “wannabe hipsters” que se aglomerava em frente ao – falecido – Estúdio Emme, point moderninho em Pinheiros, aqui em São Paulo, aprendi que deveria começar a confiar mais no meu instinto, além de, é claro, prestar mais atenção nas coisas que estão ao meu redor.
Era noite de sábado, show da dupla Pepê e Neném, famosa da década de 90 pelo sucesso “Mania de Você”, e eu lutava contra a minha preguiça para levar uma vida social um pouco mais parecida com a dos meus amigos. Eu sempre morei na periferia e, para chegar ao centro, demorava, no mínimo, umas duas horas e meia. A minha adolescência foi toda sem metrô. Eram horas e mais horas dentro de ônibus lotados e cheios de ninhos de baratas.
Antes de resolver mudar sozinha para a Selva de Pedra, em 2012, eu pouco vinha para esses cantos em dias de descanso – leia-se “sábados, domingos e feriados”.
“Festa hoje na Outs. Veeeem”, me enviava uma amiga do trabalho. “Baladinha no Vegas, vamos?”, insistia a mesma amiga em outro fim de semana. “Vamos na D-Edge? Ou no Glória?”, continou a enviar até que percebeu que não, eu não perderia quase um final de semana inteiro só para ir e voltar de um lugar.
Assim que me mudei, resolvi dar uma nova chance a vida social noturna. E o fatídico sábado era só uma prova de que, apesar de não me sentir pertencente a esta cidade, eu queria fazer dar certo. Passei então pela longa fila de jovens vestidos com camisetas e vestidos de bolinhas (para os que gostam de termos mais da moda: poás) e calças skinny. Já tinha tomado uma ou duas cervejas em casa e, por isso, pensei que as várias tatuagens daqueles diamantes (acho horrorosas, sorry, minha opinião!) era só uma multiplicação da minha trililice*. Mas não era, claro. Era a moda do momento.
Depois de falar com a hostess, que ao invés de incentivar a entrada estampando um sorriso no rosto (afinal, esse rolê custava R$ 40), parecia rezar para que a noite acabasse, consegui meu lugar ao sol. Estava lá. Estava no point da galera moderninha da cidade. Estava lá pegando uma cerveja, depois estava lá na fila do banheiro e depois, mais uma vez, pegando outra gelada. Assim que segurei a Heineken nas mãos, ouvi meio de longe o “na na na na na na na na na na”, da música “Nada Me Faz Esquecer”. Dei um gritinho, corri para a frente do palco e, lá, dei de cara com um amigo, desses que a gente vê uma vez na vida, outra na morte. Demos um desses abraços demorados e ele pediu uma selfie.
– “Uma foto? Claro!”, eu disse, mesmo estando extremamente suada e sabendo que, naquela mesma hora, eu derretendo seria publicada no Insta, no Facebook e no Twitter dele. “Foda-se”, eu pensei. Não dá pra sair bonita em toda foto.
Virei para a câmera dele, com a minha bolsa pra trás por 10 segundos e, pronto!, foi o suficiente. Coloquei a mão na bolsa, constatei que o celular não estava mais lá e me senti destruindo aos poucos.
Não, você não está mais com o celular na bolsa. Sim, você perdeu seu smartphone. Você perdeu mais de R$ 1000 num rolê que, se pá, você nem queria ir tanto assim.
É uma dor difícil de explicar.
É choque com tapa de realidade.
Pernas trêmulas.
Pernas tão trêmulas como num dia de sol e de bebedeira.
Era um dos dias mais quentes do verão de 2014 em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, para onde eu viajei para passar o Ano Novo com alguns amigos. Meu namorado, que adora natureza, trilha e chinelinho, sugeriu:
– “Tem uma praia aqui perto que chama Praia do Cedro. Tem uma trilhinha de uns 10 ou 15 minutos para chegar, mas é tranquila, vamos?”, disse, animadão.
Eu gosto de trilha e gosto de chinelinho, mas eu não sei bem se trilha combina com viagem tranquilinha de Ano Novo. Como era nosso primeiro dia viajando em grupo, eu topei. Com uma condição: que a gente levasse o cooler carregado de cervejas para matar a sede no calor escaldante do lugar. Bebida na praia custa um valor absurdo.
Mal chegamos nos arredores da praia e eu já tive que tirar a roupa. Que calor! A Praia do Cedro é linda. Uma das mais tranquilas da região. Nem o mar faz tanta onda, de tão de boas que o lugar é.
“Pimba! Natureza maravilhosa, sempre nos brindando com exatamente o que a gente precisa. Pimba! Essa praia tranquilinha na hora certa! Pimba! Trabalhei o ano inteiro igual uma condenada, eu mereço esse dia maravilhoso! Pimba, pimba, pimba!”, eu repetia, na minha cabeça, a cada 5 segundos.
Como eu já devo ter citado algumas vezes durante esse post, o calor realmente não era algo normal. “Aquecimento global, certeza!”, eu brincava. Calor pedia refresco. E eu fui me refrescando. Uma, duas, três, quatro cervejas. Mentira: foram 7 cervejas no total. E nada de almoço. Só uma batata mini que pedi na barraca do Bruno (depois conto essa história!).
Depois de duas ou três horas na praia, as pessoas do grupo pareciam no mesmo grau de bebedeira, algumas mais controlados. Mas eu, eu estava praticamente tropeçando nos galhos na trilha de volta para o carro. Até que vi uma bolsinha preta de câmera no chão e parei.
Bêbado quer tocar em tudo. Gente alterada não anda com a mão no bolso.
Abri a bolsinha e lá estavam: o smartphone, a identidade, os cartões de crédito e débito e uma nota de R$ 50. Ela, a Hilda, provavelmente pensava em beber uma coisinha aqui, outra ali na praia, igual a nós, mas perdeu “tudo” (menos a cabeça!) no caminho para a curtição de fim de ano.
Hilda tinha 56 anos, cabelo preto estilo Joãozinho e era de São Paulo. Não consegui focar no nome dos pais dela, o que me fez me sentir extremamente inútil. Eu adoro saber o nome dos pais das pessoas. Acho a combinação (ou não!) de nomes nas famílias uma coisa tão espirituosa (ou, de novo, não!).
Analisei bem para o celular da Hilda e percebi: aquele brinquedinho deveria mesmo ser importante para ela. Provavelmente faria falta pra caramba porque a tela de descanso dela era uma selfie daquelas bem de gente que curte tirar foto até no banheiro.
A bateria estava carregada até o talo, o que, pra mim, que queria encontrá-la para devolver o que tinha achado, era algo bom. “Mais tempo para que ela possa perceber que perdeu o celular”, pensei. Esperei que ela entrasse em contato. E isso aconteceu, uma hora depois. Meu namorado atendeu:
– “Oi, quem tá falando?”, disse, confusa, a voz do outro lado da linha.
Ele nem respondeu. Esclareceu que tinha encontrado o celular no chão da praia e que planejava devolver tudo para o dono. Deu o endereço de onde estávamos e combinou de Hilda passar para pegar.
Já escurecia quando Hilda passou para levar seus pertences. Ela veio num carro lotado de amigos e família. Cansada e suada da praia, e de cabelos já meio grisalhos (diferente da foto de identidade), ela só conseguiu agradecer:
– “Muito obrigada! Não sabia o que faria se perdesse isso tudo! Que alívio”, disse. E foi embora.
Eu não sou a catadora que encontrou e devolveu R$ 250 mil em Barretos, mas consegui, pelo menos, fazer minha última boa ação antes de 2014 terminar.
* Trililice: estado avançado de animação pós “algumas” bebidinhas.
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