Demorou muito tempo para o quesito “lar doce lar” começar a dominar a minha vida. Aos 13 anos, a minha preocupação número 1 relacionada ao assunto era se, depois de eu passar o dia inteiro brincando com as minhas amiguinhas na rua, minha mãe me faria entrar e enxugar aquela pia enorme de louças que ela insistia em usar todos os dias. Eu pensava: como é que uma mulher consegue sujar tanta coisa assim só para fazer um arrozinho, um feijão e umas batatas fritas?
Conforme fui crescendo, eu me afastei ainda mais dessas atividades domésticas. Eu estava muito ocupada com a faculdade, com o emprego e com o tremendo trânsito na volta para casa para me atentar se a pia estava ou não vazia, ou se o papel higiênico estava ou não prestes a terminar.
Minha primeira inconveniência “das grandes” na cozinha foi aos 21 anos: fui fazer brigadeiro para a minha host-mom na Califórnia enquanto passava o meu semestre fora, me distrai por menos de dois minutos e, quando me dei conta, havia queimado (mesmo!) a panela de inox perfeitinha da moça. Até tentei jogar meu charme para não ter que arcar com o valor daquele item (afinal, na casa dela eu até lavava as louças, e lavar as louças não estava no contrato de acomodação), mas não consegui. Ao deixar a casa antes de voltar para o Brasil, tive que desembolsar quase 40 dólares para que ela comprasse uma panela nova.
Era janeiro de 2012 quando sai da casa dos meus pais – e aquele seria o início de muita tensão na minha (recém) vida de gente grande cuidando de uma casa. O primeiro grande problema foi o entupimento da pia da cozinha do apê 51. Lembro da cena como se fosse hoje: eu, sozinha em casa na noite-véspera de um feriado gigante, com a pia toda suja e com a água parada. Pensei no fedor e na possibilidade de mosquitos da dengue se proliferarem caso eu não fizesse algo até o fim do feriado e desembolsei 600 conto pra consertar uma caca que nem minha era.
– “Isso aqui não é desentupido há uns 20 anos, moça”, afirmou, na ocasião, o rapaz que foi prestar o serviço.
Eis que entre muitos outros entupimentos, garrafas de refrigerante estouradas na cozinha e máquinas de lavar com mangueiras que estouravam e molhavam tudo, eu me deparei com ela, a dona Elza. A dona Elza era mais uma das várias velhinhas que moram no meu prédio, mas era também, a síndica dele. Era baixinha, tinha os cabelos todos branquinhos e andava encurvadinha. Falava baixinho, rouco. Apesar de tentar, nunca a consegui fazer sorrir – nem antes, nem depois do “pequeno” incidente que nos perturbou por alguns meses.
Abre parênteses.
Se eu pudesse ter uma conversa prévia com as próximas pessoas que vão cruzar a minha vida, eu acho que eu avisaria: cuidado, eu gosto de ter controle de tudo! Eu sou uma controladora nata. Se eu deixo algo sair do meu controle, é porque eu realmente já não ligo mais para aquilo. Por causa disso, já ouvi, não só uma, nem duas vezes que sou muito “sargentão”.
Fecha parênteses.
Foi por isso que eu não gostei nada de chegar em casa e ver parte da minha cozinha quebrada.
Naquela manhã, o porteiro havia me parado na saída do prédio, quando eu ia, atrasada como sempre, para o trabalho, e dito que precisariam entrar no meu apartamento durante o dia. Por esse motivo, eu teria que deixar a chave.
– “O encanador vai vir aqui hoje para ver o que está acontecendo. Está vazando algo nos apês de cima e o apartamento debaixo do seu, por exemplo, está todo destruído. A moça vai ter que pintar toda a parede da área de serviço dela”, disse ele.
Eu odeio deixar a chave na portaria. Não que eu suspeite de alguém especificamente, mas como já disse: saiu do meu controle? Só quando eu não me importo. E eu me importo (e muito) com a minha casa. Contrariada, então, coloquei minha chave na gavetinha da portaria.
Trabalhei feliz o dia inteiro.
Quando voltei para casa e abri a porta, surpresa! Chão sujo de pés, pedrinhas espalhadas por tudo quanto é canto e um buraco enorme na parede da cozinha. Liguei possessa para a portaria. Como assim minha parede está quebrada? Como assim ninguém me consultou? Como assim vocês se acham no direito de fazer o que for sem antes nem me telefonar? A resposta do porteiro foi só uma: “por favor, Aline, não foi nossa decisão, foi decisão da síndica”. Eu sentei e por pouco não desmoronei em lágrimas. O apartamento não é meu. O proprietário ficaria maluco. Eu não dei autorização para aquilo. Que merda! Por que as pessoas não se comunicam? E daí resolvi: eu ligaria para a imobiliária resolver o pepino.
– “Como assim quebraram a parede da cozinha? Você autorizou?”, perguntou a moça do outro lado da linha.
– “Não. Deixei a chave para que eles vissem se tinha algum problema e quando voltei tinha um buraco enorme. E a síndica quer cobrar 900 reais pelo trabalhinho”, avisei.
– “O proprietário vai enlouquecer. Não pode fazer essas coisas. Me manda um e-mail com todas as informações que vou resolver isso agora”, ela disse.
A moça da imobiliária pegou também o telefone da síndica para resolver a situação. A conversa que se teve foi a mesma que eu teria: que maluquice é essa de sair quebrando o apartamento dos outros sem nem perguntar se pode antes? Nos dias seguintes, tive que aturar o buraco na cozinha (eles não conseguiam arranjar um ajulejo igual para tapá-lo), o entra e sai da seguradora (sorte que o proprietário tinha!) e a cara de brava da dona Elza toda vez que me via.
O tempo passou – e a dona Elza deixou o cargo de síndica. Fui encontrando com ela raríssimas vezes.
Esses dias, grudado na parede do elevador, vi um papel sulfite com dizeres diferentes dos de sempre. Não era o típico “o boleto do condomínio encontra-se na portaria”. Era uma notícia: dona Elza havia falecido.
Esses dias também tive que soltar os cachorros no Pão de Açúcar porque os entregadores me trouxeram tomates esmagados e garrafa de água estourada. E tive que usar toda a minha força (nenhuma, peso só 44kg) para consertar o varal, que caiu com roupa e tudo na areia dos gatos. E tive que tirar mancha do tapete e tentar ressucitar a minha pimenteira. Também lutei para tirar os respingos de óleo do chão da cozinha.
Dona Elza faleceu, infelizmente, mas, paralelamente a isso, eu me dei conta que eu aprendi: vida de dona de casa não é fácil, com ou sem síndica que quebra paredes sem pedir.