Eu acordei num quarto totalmente estranho – e sofisticado demais para os padrões Aline – numa dessas manhãs em que fazia 10 graus do lado de fora. Não era só o ambiente que me deixava com uma sensação bizarra. Eu também estava um pouco enjoada e zonza – duas coisas que viraram rotina na minha vida neste ano. Demorei alguns minutos para me situar. Aquela era, talvez, a sétima cidade por onde eu passava nos últimos três dias. O motivo daqueles sintomas, então, era claro pra mim: as coisas pareciam estar acontecendo rápido demais.
Eu sou uma pessoa como qualquer outra: costumo ter dias bons e dias ruins. Nos dias bons, nada me atinge. Eu fico calma e bastante paciente. Sorrio para estranhos na rua, não tenho vontade de xingar ninguém e fico feliz quando tocam músicas do passado.
Nos dias ruins, só parece mesmo que serei atropelada. Não por um carro, ou por um caminhão, ou por um ônibus. É a sensação de que serei atropelada por uma coisa muito maior. Uma coisa chamada tempo.
A sensação doida de estar sendo levada para algum lugar sem meu consentimento havia aparecido de novo naquele dia porque eu havia feito muitas coisas num espaço muito pequeno de tempo. Eu cheguei nos Estados Unidos na sexta de madrugada. Primeiro, um voo de São Paulo para Dallas. Depois de quase perder a conexão por conta da fila da imigração, um voo para San Francisco. E depois de horas de atraso da companhia aérea, Los Angeles. Finalmente Los Angeles.
Saí pela porta do Los Angeles International Airport, o famoso LAX, às 15:15 no horário local. E logo a vi, assim, de longe mesmo. Ela, a Terri.
A Terri foi a minha host-mom durante o meu intercâmbio em Santa Barbara, na Califórnia, em 2010. Eu havia a visitado em janeiro deste ano, durante a minha road trip com o Marcos. Reparei que ela estava bem mais magra desta vez. Foi o suficiente para a minha garganta dar um nó. Eu logo lembrei o porquê. O Steve, marido dela, havia falecido pouco antes do nosso último encontro, devido a complicações do Mal de Parkinson em estágio avançado.
O nó apertou mais ainda. Percebi que agora eu e a Terri tínhamos muito mais coisas em comum do que eu gostaria.
Expulsei os pensamentos ruins e fiz uma piada qualquer ao abraçá-la. Ela parecia feliz em ter companhia para os próximos dias.
Algumas semanas antes de embarcar, eu combinei com a Terri de passarmos o fim de semana juntas antes de eu ter que participar de um treinamento em San Francisco. Eu disse que nunca tinha visto neve e ela se ofereceu para me apresentar Mammoth Lakes.
A Terri tentou não falar sobre “o” assunto durante o caminho. E conseguiu. Ficamos distraídas pela catastrófica saída de Los Angeles na sexta à tarde, bem no horário de pico. Constatamos de cara que nunca chegaríamos ao lugar onde queríamos naquela noite. E tudo bem.
Foi uma road trip inesquecível, com direito a neve em Mammoth, trilha do Devils Postpile Monument, visita ao Yosemite – e mais conversas sobre ela do que sobre mim. Fiquei com a impressão que ela fez de propósito. Deve saber que eu ainda não estou preparada para responder nenhuma pergunta sem a presença de uma tonelada de lencinhos de papel.
O tempo voou – já era segunda e eu estava em San Francisco. Era o dia em que eu teria que me apresentar na firma para um treinamento de novos contratados. Expulsei o enjoo que sentia, coloquei minha blusa listrada e meu casaco cinza favorito – porque eu amo cinza! – e saí pela porta do hotel chique demais onde me colocaram. Tinha que andar quatro ou cinco quarteirões até o destino. E, ao sair na rua, percebi que alguma coisa estava diferente na cidade.
Era a minha terceira vez em San Francisco. Na primeira, em 2010, eu e mais duas amigas ficamos hospedadas no Civic Center. Na época, eu não havia pesquisado muito onde era o local. Só sabia que ficava perto de muitas coisas que eu gostaria de ver. Chegando lá, percebemos que era um lugar um pouco hostil. Para amenizar o clima, eu brinquei com as minhas amigas que eu “era de São Mateus” e que aquilo era tranquilo pra mim.
Na segunda vez na cidade, eu e o meu namorado ficamos numa área mais turística, perto do Pier 39. Parecia um lugar muito seguro.
Desta última vez, precisava passar do centro turístico para uma área chamada Union Square – e aí sim me senti estranha. São muitos mendigos na rua, desde homens que apenas esperam que alguém deposite dinheiro em suas caixinhas até doentes físicos e mentais abandonados nas calçadas. Muitos deles ficam o dia sob efeito de drogas. Alguém me disse que, nesta área, anteriormente, havia um centro de reabilitação para pessoas com deficiências, que o tal lugar fechou e que jogaram todos na rua. Eu não sei se é verdade.
Só sei que percebi logo de cara que o pouco que teria andar, tinha que ser com muita atenção – mais ainda do que em São Paulo. Na primeira esquina que dobrei, alguém já gritou que “me odiava”, provavelmente por eu estar falando em português com uma amiga. Era Trump, né, mores? E a hostilidade não parou em nenhum momento até eu entrar no prédio para o meu treinamento.
Nos dois dias seguintes, decidi que pagaria um Uber. Estava com o computador da empresa, tenho asma e não aguento correr muito e sou muito bitolada. Essa combinação já deve ser o suficiente para você não me achar muito patricinha maluca e mimada, certo?
Porém, não durou muito. Encantada por todo o resto da cidade, pareci esquecer do que passei na Union Square. Num dos dias, decidi, de novo, voltar à pé para o hotel. Não era nem 11 da manhã. ‘Não tem como nada dar errado, tem?’, eu me perguntei.
Eu estava a uma quadra do hotel chique no qual tinha um quarto. Só faltava atravessar duas ruas e lá estaria, sã e salva. Avistei um mendigo careca, com calças rasgadas e descalço, na quadra seguinte. Ele vestia uma blusa vermelha, provavelmente com alguma piada dos Simpsons. Perguntou se eu tinha um trocado quando passei por ele. Eu acenei que não e – até, vejam bem! – pedi desculpas por não poder colaborar. Foi quando ele gritou:
– Ah, meu Deus! Você tem peitos pequenos demais!!!
Opa, opa, opa. Agora você ultrapassou todos os limites, meu queridinho. Eu tenho peito pequeno sim, mas não tão pequeno assim. São maiores do que as maçãs da Turma da Mônica – e disso eu me orgulho um pouco.
Fiquei calada, incrédula, com vergonha.
Daí entrei no hotel e comecei a dar risada. ‘Seu mendigo do caralho’, pensei – e ri de novo, checando se realmente a minha roupa deixava meus peitos menores do que já eram. Foda-se, esqueci.
No dia seguinte, eu estava morta de vontade de comprar umas gordices para levar para o quarto e comer enquanto assistia ‘Grey’s Anatomy’. Fui numa dessas farmácias-supermercado-maravilhosas que eles têm por lá. Prometi a mim mesma que, ao sair, deixaria o troco da compra com um mendigo na porta.
Com um saco cheio de M&Ms, Lays e Skittles na mão, peguei os, talvez, 15 centavos de troco e depositei na caixinha de um homem que estava no local. E…
…Era ele. Eu tenho 98% de certeza que era ele.
ERA ELE.
ERAAAA ELEEEEE, PORRRRRAAAA.
– Obrigada, babe!, disse, todo agradecido.
É isso: o mesmo mendigo que apontou para a rua toda como os meus peitos eram minúsculos, me chamou de ‘babe’ após um trocadinho.
E era pra eu ter ficado brava. Muito brava comigo mesma. Muita brava por PAGAR alguém que ofendeu os meus ‘pequenos’.
Mas eu ri.
Eu ri porque toda a história do peitinho me fez expulsar de vez os pensamentos ruins que me rondavam durante boa parte da viagem. Eu ri e me afoguei nas boas lembranças. Não é isso que dizem pra gente fazer quando alguém muito querido vai embora? ‘Daqui a pouco vai ficar apenas a saudade boa. Tenta lembrar das histórias divertidas e dos momentos bons com ela’. Ai, ai…
Apesar do olho cheio de lágrima, que também tenho enquanto escrevo esse post, eu me invadi de bons pensamentos. E eu cheguei à conclusão que, quando eu tiver um filho, eu não posso NUNCA esquecer de contar pra ele do dia em que minha mãe resolveu ir buscar um remédio na farmácia para resolver o chiado no meu peito…
– Oi, tudo bem?, ela disse. Eu precisava de um Vick Pirena para passar no peitinho da minha filha, pediu. Ela sempre falava as coisas no diminutivo, com um carinho fora de série, por tudo e por todos.
– Ah, ela tá doentinha, é? Tá com o peitinho chiando?, perguntou o farmacêutico.
– Está sim, minha princesinha! Tadinha dela!, continuou, toda mãe-boba.
– Ai, então tem mesmo que levar esse Vick e passar no peitinho dela, disse ele, obviamente se comovendo.
– Pode deixar. Vou passar no peitinho dela sim, afirmou minha mãe.
– Coitada! Vai melhorar, com certeza. Quantos anos ela tem?, perguntou, curioso, o moço da farmácia.
– Ela tem 23, respondeu minha mãe, provavelmente deixando o rapaz em choque.
Ele resolveu brincar:
– Então não é mais peitinho, né?, disse, rindo.
E, com um humor que eu sinto falta todos os dias, a minha mãe respondeu:
– É PEITINHO SIM!
Ela chegou em casa gargalhando. E eu prometi que nunca apareceria na farmácia do bairro com ela ao meu lado. O moço teria um ataque de risos.
Mas pronto. Chorei aqui. Eu disse que não estava preparada pra isso se não tivesse meus lencinhos.
Eu contei essa história do peitinho na farmácia pra todas as pessoas que me conhecem. Todas. Nos últimos 7 anos. Eu já contava antes e conto ainda mais vezes agora porque não quero que isso também vá embora.
Dizem que quando as pessoas morrem, a gente passa a levá-las aqui dentro. E mãe, você está bem aqui, ‘no meu peitinho’ – e pra todo sempre.
ô, aline! me fez chorar aqui!
acompanho sua trajetoria desde 2010, quando nos conhecemos naquele paraíso lá. nós duas passamos por varias coisas nesse meio tempo, e veja só, ainda sigo você por aí e ali e acolá e ainda adoro ler o que você escreve. quase nunca comento, poxa, me desculpa? mas esse texto me atingiu como uma pedrada na cabeça. talvez porque minha mãe tá longe, talvez porque ela seja o oposto da sua mãe, talvez por outros tantos motivos que eu jamais poderei explicar. só que eu agradeço, é bom ler coisas assim em dias que eu me sinto tão sozinha.
um beijo!
Eita mendigo danadinho hein rsrs …
Vc é maravilhosa , me fez chorar e ao mesmo tempo rir com um nó na garganta …
Parabéns , eu esperava por suas aventuras escritas aqui .
Nesta história com poucos parágrafos me fez enxergar não só a dor , mas a lembrança doce com lágrimas e risos e q de tudo temos o poder de eliminar coisas negativas com nossos pensamentos. …
Lembro que há alguns anos era viciada em ler seu blog, passou um tempo, a vida ficou corrida e acabei esquecendo. Hoje vi o link no twitter e resolvi ler e posso dizer que mesmo mais velha continuo gostando do modo como você escreve, continuo cativada, até chorei lendo. Beijos! :)
Ah! Aline que lindo!!! Todas as vezes que você fala dela eu choro,choro por ela,por você e principalmente porque lembro da minha mãe…Choro muito,demais…Mas é isso:Eu ri e me afoguei nas boas lembranças. Não é isso que dizem pra gente fazer quando alguém muito querido vai embora? ‘Daqui a pouco vai ficar apenas a saudade boa. Tenta lembrar das histórias divertidas e dos momentos bons com ela’. Ai, ai…
Oi! :)
Só queria dizer que acabei de ler o seu texto no trabalho e vc me fez gargalhar com “São maiores do que as maçãs da Turma da Mônica – e disso eu me orgulho um pouco.” e a ficar com os olhos cheio de lágrimas. Tudo em um espaço de 10 minutos hahahahaha <3
Perdi vovô esse ano, e teu texto me fez chorar, ele está sempre nos meus pensamentos, e meu Deus, que saudades dele, sinto muito pela sua perda, a gente nunca está preparado para perder alguém que amamos :'(