Antes de conhecer o Thomas, eu havia tido apenas dois grandes amigos homens na vida. Um deles se mudou ainda novo demais para outra cidade (e me deixou orfã das melhores conversas “sobre tudo” que imaginei ter com alguém) e outro desencanou da amizade depois de uns dois ou três anos, quando eu deixei claro que já não estava mais afim de sair para a balada com ele o tempo todo (eu sou de bar, não de balada, sabe?).
Quando cheguei na Califórnia, no início de um mês de janeiro de muita ventania, o Thomas era o único aluno “novo” na minha sala e sentou-se ao meu lado logo de cara, como se dissesse um “estamos juntos nessa”. Ele tinha vindo da Suíça há apenas quatro dias e estava louco para fazer novas amizades na cidade onde ficaria pelos próximos 4 meses. Logo nos primeiros minutos da aula, o Thomas abriu seu caderno todo estropeado e começou a desenhar, assim mesmo, enquanto o professor explicava a metodologia da escola. Quando o sinal bateu, ele me cutucou e me entregou uma folha com um desenho tipo grafite de rua, onde se podia ser o meu nome. Assim que entrei no carro da Trine para ir embora, ela viu o papel na minha mão e não perdoou :
– “Thomas? Xiii, você ganhou um desenho de presente. Já conquistou o primeiro cara na Califórnia. Será que é porque você é brasileira?”, ela brincou.
Nos dias seguintes, os desenhos de presente do Thomas só aumentavam: depois de ensiná-lo que “shit” em português era “merda”, o Thomas me entregou um grafite com “merda” escrito bem grande. “Para enfeitar a parede do seu quarto e te fazer rir toda vez que lembrar de mim”, ele se justificou. Ele também desenhou o sol e a praia, porque eu disse que gostava muito dessas coisas.
Meu amigo suíço não era bem o tipo de cara por quem as meninas se apaixonam. Era meio bobão vez ou outra (a Trine vivia dizendo que ele tinha algum distúrbio), tinha os dentes tortos, a risada exagerada, o cabelo todo mal cortado e era branquelo demais. Eu pouco ligava para a aparência do Thomas e estabeleci com ele uma das minhas maiores ligações no tempo longe de casa. Nós almoçávamos juntos depois das aulas, passávamos tardes nos bares da cidade fazendo degustação de cervejas, ele me emprestava o acervo de bonés aba reta dele, assim como me deixava sentar no skate dele para eu não me sujar…
A minha relação com o Thomas era óbvia demais pra mim: nós éramos SÓ amigos. Mas não foi bem assim que ele me interpretou. E essa foi a primeira decepção dele na Califórnia: apesar de posarmos para fotos juntos, rirmos das mesmas piadas e pedirmos o mesmo lanche no Subway, eu não era quem ele gostaria que eu fosse na vida dele. Depois de explicar que não era com ele que eu queria namorar, eu continuei em contato com o Thomas, mas me afastei um pouco, confesso.
Thomas já fumava maconha e bebia mais do que o normal quando nós nos conhecemos. Era divertido ouvir as histórias dele no começo. Eu ri de como ele perdeu a câmera novinha logo no primeiro fim de semana de curtição em Isla Vista, de como ele escorregava toda vez que se escondia num morro da cidade para fumar um baseado e de como ele fugia da polícia vez ou outra porque era o único maior de idade em algumas festas com bebidas alcóolicas que ia. No início, eu sabia que era mais de brincadeira, para passar o tempo, para relaxar. É que com o tempo, a tal zoeira virou um vício grande demais. O consumo excessivo de drogas e bebidas afastou muita gente do Thomas, não porque elas não bebiam ou porque não fumavam, e sim porque todo mundo (menos ele) percebia que ele havia ultrapassado o limite. Sair com ele era raramente divertido. Ele mudava tanto “sob efeito” que o que era pra ser festa se tornava em vergonha enorme para quem estava por perto.
Nunca vou esquecer do dia que o Thomas baixou numa das festas mais divertidas que eu já fui na vida, a do Alexander, aquele modlo gato da Abercrombie que conheci (lembram?). Ele ficou pouquíssimo tempo por lá. Todo mundo dançava “Bonkers” e conversava sobre aleatoriedades quando um barulho enorme nos chamou atenção. Alguém havia quebrado o vidro da janela da casa do Alexander. Era o Thomas. Alterado demais ele começou, do nada, a gritar todos os tipos de xingamentos existentes no dicionário inglês.
– “You fucking motherfucking fuck. Fuck you, you fucking shit. You little fuck. Fucking cunt”, ele repetiu umas 30 vezes. Eu nunca tinha ouvido tanto “fucking” na minha vida. Naquela noite, só um soco no nariz intimidou o Thomas, que foi embora da festa sangrando.
O Thomas sabia que eu sempre estive em outra e aceitou isso aos poucos. Só não aceitava mesmo quando via as outras meninas que ele queria pegar ficando com outros caras. Toda vez que era rejeitado, o Thomas gritava na cara da pessoa um “você é uma puta” violento demais.
Dias antes de o Thomas ir embora da cidade, eu curtia uma balada quando o meu telefone tocou. Já era mais de meia noite:
– “Aline?”, disse o Thomas do outro lado da linha.
– “Oi, Thomas! Cadê você aqui na Sharkeez? Tá todo mundo aqui, corre, vem pra cá!”, eu disse, sabendo que a diversão acabaria no segundo em que ele aparecesse fora de si.
– “É que eu… Eu não quero mais viver”, disse o Thomas. “Vim de skate aqui numa ponte”, ele continuou.
Eu já sabia o que estava por vir. Apesar de ter me afastado muito do Thomas, eu sabia que o que ele sentia já não era mais só brisa. Me adiantei:
– “Sai daí agora! Vai pra casa. Eu te encontro lá, Thommy”, ordenei.
– “Eu vou me jogar, Aline. Todas essas putas, elas não querem ficar comigo. Eu não quero, Aline… Eu não quero mais…”, berrou o Thomas, obviamente alterado.
Fiquei ao telefone com o Thomas por uns 10 minutos, até que ele disse que eu podia ficar tranquila na festa que ele nada faria. “Vou pra casa então”, afirmou.
Eu e o Thomas nunca conversamos sobre o dia que ele quis se matar. Ele foi embora para a Suíça e as festas ficaram mais tranquilas. Pelas fotos que vejo do nosso Thommy, não acho que ele mudou tanto de vida como eu esperava.
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