A bailarina da caixinha de joias que me ensinou tudo sobre a liberdade


Foi lá pelos meus sete anos que as tais caixas começaram a brotar, inesperadamente, lá em casa. Alguém chegava para uma visita no domingo à tarde, fofocava um bocado na sala espaçosa de sofá confortável, comia os deliciosos bolos de fubá e de cenoura de mamãe e, pouco antes de ir embora, abria a bolsa e anunciava o estranho presente.

“Achei essa caixinha de joias a sua cara”. Mamãe sorria, agradecia de coração como sempre e, não muito chegada em receber, mas sim em presentear, esperava quem quer que vinha ir embora e guardava a caixa dentro de um dos armários.

No auge da minha infância, eu mal sabia que diabos eram joias. Eu já custava a entender, naquela época, o motivo da minha Genir* fazer tanta questão de que eu usasse aquelas pérolas falsas brilhantes nas minhas orelhas – como me incomodavam na hora de dormir! Mas eu a obedecia: só tirava a bijuteria do rosto quando era imprescindível.

O tempo passava e as visitas às vezes apareciam com outros tipos de mimos: colares, canecas e xícaras decorativas, mini-baús de guardar documentos… Tudo embrulhado em exuberantes papéis de presente verde água ou azul turquesa floridos. Como reluziam aqueles embrulhos. Um verdadeiro crime aos olhos de qualquer um, hoje eu penso.

Faltava pouco para o meu aniversário de 10 anos e eu estava bastante feliz. Havia convencido a mamãe a ter uma festa temática da Angélica naquele ano, mesmo ela sendo a maior e mais persuasiva fã de Xuxa que existia no planeta. Me lembro da vez que me recusei a ir com ela naquele show famoso do Parque do Carmo, pertinho de casa, e ela arrastou as minhas primas no meu lugar. Voltou contanto que um helicóptero rosa sobrevoou o local e que, pouco tempo mais tarde, a rainha dos baixinhos entrou no palco com todas as paquitas a que tinha direito. Meu pai, sempre muito desconfiado, disse que mamãe havia sido enganada – que por estar tão longe da estrutura principal, não conseguiu perceber que aquela lá não passava de uma sósia.

Apesar de não ter sido uma criança muito sociável – eu era extremamente tímida – estava muito ansiosa para a grande festa, aquela da Angélica. Movimentaria a rua toda. Mamãe havia convidado até os adolescentes. Que incrível! Adolescentes na minha festa! Na minha festa da Angélica. Será que desta vez eu seria bem-vinda para brincar com as minhas primas mais velhas? Ou elas continuariam me tratando como aluna na “escolinha” delas, mesmo eu sabendo fazer a voltinha da letra ‘o’ bem melhor do que todas?

Cada nova ida para a escola era um dia a menos no meu calendário pessoal. A minha festa seria incrível, eu tinha certeza.

O grande dia chegou…

…E não foi bem como eu imaginava. Momentos antes do pontapé inicial da festa, comecei a me sentir mal. A garagem toda decorada de Angélica e eu, isso mesmo!, passando mal. A comemoração toda foi por água abaixo – pelo menos para mim, já que os outros, sem nem me notar, se deliciavam com os salgadinhos encomendados pela mamãe e os docinhos enrolados a mão.

O meu fim foi quando tocaram, mais alto do que o normal, uma música do ‘É o Tchan’. A Natália, minha melhor amiga na quarta série, dançou toda feliz com as mãozinhas chacoalhando. As meninas da minha sala se animaram e também fizeram a coreografia. Minha cabeça doía e resolvi dizer para mamãe que não aguentava mais. Ela alisou o meu queixo e garantiu que, em minutos, cantaríamos o parabéns. Confiar na mamãe era fácil – o que ela prometia, cumpria. Não tinha essa de “depois mamãe compra” ou “depois mamãe faz” para convencer-nos a parar de fazer birra.

Cantamos o parabéns e eu, já toda molenga do corpo, estava quase indo para a cama quando mamãe puxou minha jardineira de leve e disse:

– A Lurdes e a Adriana estão aqui e querem te dar um presente. Vamos dar ‘oi’ e depois subo com você para colocar você na cama, bonequinha.

Eu perdi as contas de quantas vezes mamãe me chamou de bonequinha na vida – foram tantas que eu já realmente acreditava ser tão linda como ela me dizia ser.

Eu fui. Cumprimentei as vizinhas, sorri o quanto uma criança com 38 graus de febre era capaz. Naquela época, a regra de etiqueta era abrir os recebidos na frente de quem presenteou… e lá fui eu. Desembrulhei o presente delas e me deparei com “aquela” caixa.

‘Olha, é uma caixinha de joias linda”, disse a minha mãe.

Eu sorri e logo em seguida já senti aquele mal-estar de novo, dominando cada pedacinho do meu corpo magrinho e minúsculo. Agradeci e subi para o meu quarto – o último do corredor extenso lá de casa, o que me dava calafrios toda vez que estava com a luz apagada.

Diferente de quase todas as crianças da minha idade, deitei na cama e capotei. Esqueci, pra valer, todos os presentes da festa num canto no chão. É que apesar de ser uma criança calibrada em Biotônico Fontoura e sopinha de espinafre do Popeye, eu era constantemente derrotada por viroses e pneumonias.

O dia amanheceu… Revigorada após uma noite de sono e bastante analgésico, reabri todos presentes e escolhi o meu favorito: o da minha tia Rose. Essa sim sabia como me deixar feliz! Que criança da minha idade não ficaria ma-lu-ca pela geladeirinha alaranjada cheia de mini produtos de mentirinha? Esse com certeza entrou para o hall de melhores presentes já dados a uma criança chamada Alininha em toda a vida. Só perdia mesmo para a feirinha-versus-sacolão-de-frutas de mentirinha que mamãe comprou para minha na época em que as lojas Mappin ainda existiam.

Fiquei muito incomodada com os pares de meia que ganhei, mas mais ainda com um sutiã rendado dado por outra vizinha – isso mesmo, um sutiã rendado bege. Quem acha que seria uma ideia maravilhosa presentear uma menina de 10 anos com um sutiã de rendas? A onda de raiva que me invadiu passou e eu abri o embrulho da encantadora caixinha porta-joias que, mais tarde, eu descobriria, tocava Fur Elise, do Beethoven.

Sentei no chão e coloquei a caixa sobre a cama forrada com a minha colcha favorita do Piu-Piu – a tenho até hoje! Quando a abri e a primeira sinfonia tocou, não entendia nada. Era uma caixa de joias e tocava música? Logo percebi um espaço de espelho rodeado por dois compartimentos de armazenamento – num deles havia uma bailarina magrinha igual a mim. A segurei na mão e a posicionei de pé sobre o espelho.

Eu nunca tive interesse em fazer balé, mas aquela bailarina de alguma forma me interessava, pois eu, naquela época, tomava aulas de ginástica olímpica – ela performava e eu também teria que me apresentar ao fim daquele ano na escola.

Assim que dei corda, ela começou a girar freneticamente pelo espelho com Beethoven tocando ao fundo. Às vezes, de tanto rodopiar, bambeava e caía dura. Eu a observava cair e a levantava. Ela, às vezes, desequilibrava mais uma vez e caía de novo. Durante um tempo, essa foi a minha obsessão: não deixa-la caída no chão.

Durante alguns dias seguintes ao meu aniversário de 10 anos da Angélica, eu passei horas olhando aquela caixinha de joias da bailarina que caía. Depois de um tempo, percebi que o meu problema não eram mais as quedas enquanto ela dançava. Eu agora pensava com pesar, com uma dor torturante, que aquela bailarina de pés magnéticos, estava presa num mundo onde eu a escravizava, fazendo-a rodar e rodar, mesmo sem que ela quisesse.

Tomei uma das minhas maiores decisões nessa época. Assim como mamãe fazia com os presentes das visitas de domingo, que levavam caixinhas de joias com bailarinas, eu guardei o meu presente no fundo do armário e o esqueci lá. Algumas noites, resolvia tirar a caixinha pra fora para dizer um “oi” para a bailarina, que agora não precisava mais rodar até cair. Toda vez que eu olhava para aquela bonequinha de vestidinho brilhante, eu pensava: Viva! Viva a bailarina liberta!

*Genir é o nome da minha mãe.

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