#Crônica: O bairro onde eu nasci e o amigo que eu conheci fora dele

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O bairro onde eu nasci continua o mesmo: as casas assimétricas e coloridas de São Mateus, que lembram a Rua Caminito, em Buenos Aires, continuam a apagar suas luzes por volta das 20h, horário em que todo mundo já voltou do trabalho, jantou com suas famílias e espera, ansiosamente, para ver o William Bonner entrar no ‘Jornal Nacional’.

Os letreiros dos comércios ainda são de grafiti na parede, não de LED, nem dessas placas glamurosas e cheias de firulas típicas da cidade grande.

Os fanáticos religiosos dos arredores seguem, toda noite, com seus paletós e suas saias compridas rumo ao culto, levando nas mãos suas bíblias calejadas e, no coração, a esperança de que Deus resolva todos os problemas.

Os gatos dos vizinhos ainda aproveitam as noites de verão para gritar de prazer debaixo da minha sacada. Aff. Eu me lembro bem de quando eu era criança: o coito barulhento desses bichanos da vizinha dos oito filhos homens e da uma filha mulher me faziam jurar que ETs estavam invadindo a Terra toda santa noite. Eu então abraçava a minha coberta do Piu-Piu (eu amava o personagem!) bem forte e esperava até meus olhos estarem tão cansados que fechariam sem eu nem perceber.

Hoje, quando escrevo esse texto, ainda é inverno (eu odeio frio!). A chuva cai lá fora e o vento gelado me assusta, mas eu precisava abrir a janela. É que eu sempre gostei de olhar pra fora. Sempre admirei os passos lentos e, também, os passos apressados dos meus ‘cumpadis’. Hoje é inverno, eu olho pela janela e percebo: o bairro continua o mesmo, quem mudou mesmo fui eu, que agora descubro novas quebradas e me vejo crescer de novo – dessa vez como adulta e num lugar longe de ‘casa’.

Eu sempre quis ter a vida que eu tenho hoje. Aos 14, eu escondi um bilhetinho no armário com o meu maior desejo de adolescente escrito nele. Só achei há poucos meses e me emocionei quando li o que dizia:

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O apartamento está aí, apesar de não ser exatamente meu. O Yorkshire ‘virou’ uma gatinha preta adorável, que apesar de já ter mais de dois aninhos e ser considerada uma adolescente no mundo dos gatos, ainda corre atrás de mim por toda a casa dando patadinhas para chamar a minha atenção. Meus leitores ainda não me enviam cartas, até porque só agora eu penso em escrever um livro.

O bairro onde eu nasci continua o mesmo, mas eu mudei. E mudei tanto – e o mundo também – que agora eu acho que eu nunca mais vou receber cartas dos meus leitores. Será que correio vai existir daqui uns anos? Aos 26 (quase 27!), eu só consigo me imaginar recebendo e-mails e inboxs de todos os tipos. Uma pena, porque tem pouca coisa que me deixa mais feliz do que tentar decifrar as palavras escritas a punho. Mas as pessoas devem ter preguiça de escreve à mão. Escrever a mão é tão mais íntimo… Enfim!

O bairro onde eu nasci continua o mesmo. Os vizinhos ainda saem na janela quando ouvem o barulho de um carro chegando ou de uma chave virando na fechadura de qualquer das residências. É uma espécie de aviso de que quem chega ao bairro tem uma ‘proteção’. É tipo um ‘estou aqui te acompanhando entrar com segurança, vai lá’. Na minha nova ‘quebrada’ é tão diferente… Lá, as pessoas desistem de sair de casa na mesma hora que as outras pessoas. Ninguém quer se ver. Se a fechadura do 54 fez barulho, o 52 espera mais 5 minutinhos para sair, mesmo que esteja atrasado, só pra não esbarrar no vizinho.

São Mateus ainda é o mesmo. Eu é que mudei. Hoje eu abro a porta feliz quando alguém chega em casa. Quando eu era menor, eu era tão tímida, mas tão tímida, que eu corria da porta toda vez que alguém chegava. E era bizarro, porque eu vivia com uma pantufa de vaquinha amarela que fazia barulho nos pés. Toda vez que alguém chegava, só ouvia os MUUUUUU da vaquinha se perdendo no corredor pro meu quarto.

O amigo do meu irmão por quem eu era apaixonada continua em São Mateus. Eu é que me mudei. Eu é que comecei a recusar me deixar levar por amores desde que pisei na nova quebrada. “Vou ser casual”, eu devo ter pensado, apesar de ser, provavelmente, a mais romântica das virginianas. Mas daí se passaram 1, 2, quase 3 anos, e ele chegou.

Eu pensei que esse negócio de gostar de alguém fosse diferente. Sempre achei que se fosse pra dar certo, tinha que ser um lance bem doido, uma mistura de amor à primeira vista, atração fervorosa e afinidade infinita. Pensei que esse sentimento me devastaria, me levaria pra longe do ‘eu’ que estou acostumada a ser logo no primeiro dia, na primeira semana. Só que, aí, foi menos cinematográfico do que eu achava – e ainda bem.

Muita gente no bairro onde eu nasci, que continua o mesmo, já teve seus rolos, seus amores, até mesmo seus filhos. Mas essa é a minha primeira vez vivendo muita coisa. E quanta coisa estranha! Que mundo novo! Mas que bom que é com eleque tem sido tão paciente que até me faz sentir mal.

Esse ‘trem’ (não tem trem que vai até o bairro onde eu nasci!) passa longe de ser desgovernado, mas eu não ligo para quantas estações estão no caminho, e nem ligo para qual será o ponto final dessa linha. O bom mesmo é estar nos trilhos. E com ele.

O bairro onde eu nasci não mudou nada. Mas eu mudei, e continuou mudando, porque agora eu tenho mais um motivo pra fazer isso. Obrigada por ‘estar’.

* Texto escrito em setembro de 2014

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