Como o parquinho de diversões do bairro ajudou a construir quem eu sou hoje

Foi da poltrona G21 que eu senti, subitamente, um arrepio subindo dos pelos da perna até as costinhas do crânio. Não era, naquela noite, a tradicional campainha de teatro que eu eu estava acostumada a escutar toda vez que ia assistir a um espetáculo. Era mais escandalosa do que o normal: como a que eu ouvi tantas vezes quando ia com os meus pais nos parquinhos de diversões que rodeavam o nosso bairro.

TRIMMMMMM.
TRIMMMMMM.
TRIMMMMMM.

Era um TRIMMMMMM agudo, como o toque de um daqueles telefones antigos em que se discava girando uma tela até os números. Era o som que anunciava que chegara a hora de nós, pequenos aventureiros de montanhas-russas e bate-bates enferrujados da periferia, nos prepararmos para a diversão. Toda vez que aquele som tocava, nós sabíamos: o “maquinista”, como eu costumava chamar o operador dos brinquedos durante a infância, estava prestes a apertar o PLAY.

Aquele som, num teatro lotado num domingo à noite, de repente me transportou para longe. Estava agora nos anos 90, sentada no carrinho azul da pista do bate-bate, vestindo meu moletom cor-de-rosa favorito do Piu-Piu. Eu me sentia ansiosa, igual na infância, quando os procedimentos a serem feitos, assim que eu sentava naquele banco duro, eram muitos. Primeiro, eu tinha que se ajeitar muito bem no assento – para as costas magrinhas não ficarem doloridas caso eu fosse atingida. Depois, tinha que amarrar forte o cinto – para não ser lançada longe, como temia a minha mãe. Também fazia o teste do pé, para saber se eu alcançava o acelerador e conseguia mantê-lo pressionado por tempo suficiente, já que ele era demasiadamente duro para mim… Aí sim eu ficava, finalmente, dominada por aquele medo e euforia – à espera daquele TRIM.

TRIMMMMMM.
TRIMMMMMM.
TRIMMMMMM.

Era aquele o apito inicial para o meu jogo de fuga imaginário, onde a minha meta principal era, claro, não ser pega por ninguém. Dava certo algumas vezes mas, na  maioria delas, eu era o alvo número um de boa parte das crianças na pista do bate-bate. Eu até que tentava: dominada por adrenalina, afundava o pé no acelerador e tentava controlar aquele volante pesado deslizando para lá e para cá sem nenhuma batida. Noutras vezes, eu simplesmente exagerava. Eu corria tanto que, no auge da velocidade de um carrinho de bate-bate, desencanava de apertar o freio e batia com tudo nas laterais da pista. Era nessa hora que eles me pegavam: vinham dois ou três carrinhos de uma só vez para cima de mim. Meu carro azul chacoalhava forte, fazendo meu cinto afrouxar e eu bater o peito no volante – parecia sempre ser exatamente nessa hora que a brincadeira era finalizada pelo tal maquinista. Todo mundo saia sorrindo, até eu. Mas eu saía, também, com outro sentimento dali: aquele de “na próxima vez vai dar certo!”.

Andávamos mais um pouco pelo parque e, então, eu era convencida que estava na hora de ir embora. Como uma criança muito “do bem”, sentava no banco detrás do carro do papai e partia sem reclamar. Durante toda a semana seguinte, sentia as piores dores do mundo por causa do impacto (ah, se eu soubesse da existência de Dorflex naquela época!).

Parece exagero, mas eu era realmente uma criança muito magrinha. Fazia acompanhamento médico e tudo. De tempos em tempos, mamãe desconfiava que eu tinha anemia. Daí pegávamos o ônibus intermunicipal do Terminal São Mateus até um lugar no caminho para Santo André e entrávamos na clínica do doutor.  Ele dizia a ela que era bom sempre retornar para que ele me visse. Dizia também que eu tinha a idade óssea de uma criança quatro anos mais nova do que eu. Eu nunca me importei com isso, porque sempre ganhava um pirulito de coração depois da consulta e já estava mesmo acostumada a ser a menor da minha turma. Essas coisas de crescimento sempre deixaram mamãe encafifada – mas, depois de um tempo, ela confiou que o Biotônico Fontoura estava fazendo efeito e que eu estava comendo mais. Hoje em dia, se eu pudesse, diria para mamãe que eu já desenvolvia, naquela época, minhas habilidades de manipulação: comia só quando estava interessada em alguma coisa – ou no Kinder Ovo de sobremesa, ou em outra ida ao parquinho para brincar no bate-bate.

Numa dessas idas ao parque de diversões, que hoje em dia, aliás, é um condomínio, avistei da fila do carrinho um brinquedo que, imaginei, daria a mesma adrenalina de quando tocava o TRIMMMMMM na pista controlada pelo maquinista. Era um escorregador inflável gi-gan-te, nas cores rosa, marrom, branco e azul. Fiquei vidrada naquilo. Desejava estar no topo dele, onde dezenas de crianças que subiam por escadinhas infláveis na lateral, escorregavam felizes com rumo ao chão. A minha mãe sabia o que aquele meu olhar significava – ela me conhecia como ninguém. Superprotetora, não me deixou ir naquela geringonça logo de cara.

“É perigoso”
“Tem muita gente”
“É muito alto”

Nesta época, minha mãe não esperava que eu insistisse para brincar naquilo. Ela estava acostumada ao comportamento do meu irmão mais velho em parquinhos – ele basicamente só ia em um brinquedo depois de passar muito tempo olhando como era o seu funcionamento e tendo certeza de que não era perigoso, o que quase sempre o levava a brincar somente naqueles carrosséis de patinhos de crianças de 5 anos. Comigo não era bem assim. E lá estava eu, depois de muito insistir, naquele escorregador gigante de ar.

De longe, enquanto escalava as pequenas escadas infláveis, vi seu rosto ficando cada vez mais tenso. Foquei no objetivo: chegar ao topo rápido.

A vista lá de cima me fez sentir invencível! Foi ali que eu me senti LIVRE pela primeira vez na minha vida inteira. Vendo lá do alto boa parte do bairro, me posicionei para a descida e me joguei. Fui quicando com o bumbum por alguns metros – e ri descontroladamente, como naquelas primeiras vezes que consegui completar o desafio de fugir das crianças no carrinho de bate-bate.

Cheguei para abraçar mamãe depois da brincadeira com os cabelos todos em pé e ela apenas sorriu. Não disse nada. Esta foi a primeira vez de muitas que viriam que ela se comunicaria apenas com o rosto – e o que eu via era um certo orgulho e um reconhecimento inexplicáveis estampados ali. Devia pensar, internamente, que tinha a menininha mais corajosa do mundo – já que ela própria não seria capaz de se jogar lá de cima.

Nos anos seguintes, eu cresci mais – e já podia entrar desacompanhada no chapéu mexicano. Foi por muito tempo o meu brinquedo favorito do parque de diversões. Principalmente porque eu podia ver as coisas do alto, de outra perspectiva. Muitas vezes, a via da minha cadeirinha, acenando lá de baixo, como se dissesse: “Vai, minha menina aventureira! Ganha o mundo!”.

Mais tarde, fiquei obcecada por aviões e viagens. Ela sempre avisava, toda vez que eu marcava de conhecer um destino novo: “você vai, mas volta, viu?”. Eu voltei todas as vezes, porque meu lugar era mesmo no melhor parque de diversões que existia: ela.

No domingo à noite, da poltrona do teatro num domingo à noite, eu senti que, hoje, realmente posso dizer: estou mesmo ganhando o mundo, mãe!

Tomara que, de onde quer que ela estiver, ela consiga ouvir.

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