24. Markus, o dono da camisa verde mais horrorosa


Sonhei que era entrevistada por uma espécie de Jimmy Kimmel numa dessas noites. Deitei na minha cama, no meu apê na Bela Vista, anônima, mas consegui, em poucos minutos, viajar por um universo de fama que eu nunca nem pensei em viver, em Los Angeles. No sonho, meu cabelo era ondulado e brilhava bastante. Eu usava um vestido preto elegante, desses de artistas que vão ao Oscar. A maquiagem no rosto e o lápis de olho me deixaram tão bonita que eu mal me reconhecia. Montada desse jeito, eu falava, sei lá por qual motivo, de amor em um desses talk shows assistidos por milhares de americanos. Eu falava dele, do Markus.

O Markus era um suíço de 19 anos, natural de St. Gallen, que sonhava em ser um economista de sucesso quando o conheci. Três dias antes de ele entrar para a minha sala do Upper Advanced 2, em Santa Barbara, na Califórnia, eu só pensava em uma coisa: pegar um ônibus para uma cidade que eu ainda não conhecia e ver gente nova. Eu queria falar sobre a vida, queria dançar até o chão numa balada de gringos, queria aceitar que alguém me pagasse um drink num bar e queria assistir ao nascer do sol com um desconhecido. Se apaixonar estava em último plano durante os meses que morei fora. Mas daí ele chegou, com aquela blusa verde da Ralph Lauren horrososa, mas com aqueles olhos azuis lindos. Com aquele sneaker cinza todo fodido, mas com aquele sotaque europeu que me encantava. E aí tudo mudou.

A atração física e intelectual que eu sentia pelo Markus não se comparava a nada que eu já havia sentido na vida. Eu, que sempre consegui focar eu tudo o que eu queria, me pegava trocando olhares com ele a aula toda. Na primeira semana, mesmo tem termos muita intimidade, voltávamos do intervalo um pouco antes dos outros alunos, sentávamos nas cadeiras amareladas daquela sala 106 e pouco além daquele momento nos importava.

Era madrugada de sábado quando o encontrei em uma festa universitária na cidade que todos sempre iam. Já bem felizes por causa da vodka com suco de laranja que nossos amigos distribuíam, nos abraçamos bem forte e falamos umas coisas um para o outro. Eu infelizmente não lembro do que foi dito na conversa. Só lembro que, no dia seguinte, colaram uma foto minha com ele no meu mural. Eu ri e achei fofo. Os olhos azuís dele mal apareciam naquela imagem. Estavam tão vermelhos por causa da bebida…

O Markus me adicionou numa rede social depois daquela noite. Conversamos mais e mais durante o final de semana, criamos bastante intimidade e, já na segunda-feira, nos comportávamos como dois insuportáveis. Eu e ele já tínhamos tantas piadas internas, essas de casais de 30 anos de relacionamento, que os nossos colegas da sala já sabiam que alguma coisa estava acontecendo. O sinal de fim de aula bateu naquele dia e o Markus, que olhava atento toda vez que eu abria a boca para falar, veio em minha direção. Perguntou se eu queria almoçar com ele. Só eu e ele.

Nosso primeiro ‘date’ foi num lugar que eu nunca vou me esquecer: o California Pasta, bem na esquina de uma galeria de shoppings chamada Paseo Nuevo. Parece até filme, mas enquanto almoçávamos, até a garçonete sentiu o clima. Sorria do bar enquanto olhava em nossa direção. O Markus pagou a conta toda, apesar de eu dizer pra ele que aquilo me ofendia. Não quis se despedir logo, por isso perguntou se eu estava com a tarde vazia. Ele queria dar um passeio na praia. E fomos. Ali, ficamos três horas conversando sem parar. Corremos quando o relógio deu 17h50. O último ônibus para Carpinteria, onde ele morava, saía em 10 minutos. Na estação de ônibus, ele me deu um abraço apertado, pediu desculpas por não esperar que eu fosse embora e subiu na linha de número 21.

A primeira vez que o Markus e eu nos beijamos estávamos num fumódromo de uma balada. Debaixo de um aquecedor, num sofá duplo, o Markus se mostrava ainda mais encantador. Falava que tinha uma casa nas montanhas na Suíça e que queria muito que eu fosse conhecer. Me ensinou a falar palavrões em alemão e gargalhava toda vez que eu não conseguia fazer a pronúncia correta. O desejo de transformar tudo com o ele em mais de uma semana, mais de um mês, mais de 10 anos ou talvez em uma eternidade gritava. Até que surgiu a tensão. Foi tão rápido que nem deu tempo de sentir. Ficamos juntos ali por umas 4 horas e, mais uma vez, nos provocamos. “Você nem vai lembrar que me beijou amanhã”, disse ele. Fiquei visivelmente irritada. Como assim não ia lembrar? “Vamos combinar de dizer palavras chave assim que acordarmos amanhã. Se você lembrar quais são as palavras, eu acredito que você lembrou do meu beijo”, continou o Markus. Achei tudo tão absurdamente cinematográfico que só consegui rir. Na manhã seguinte, provei que lembrava de tudo dizendo um “ducks and sharks”, nosso tal código, no mural dele e, depois, pessoalmente.

Maio foi o meu último mês na cidade. Os dias foram passando e Markus e eu nos recusamos a entrar em clima de despedida. Na minha última terça em solo americano, eu e ele comemos juntos num chinês barato e decidimos ir ao cinema. Nas telonas, “Date Night”. Bom saber que o filme era horroroso. Só uma desculpa pra Zürich se perder na Terra da Garoa. Antes de embarcar no ônibus para casa, o Markus me deu um beijo molhado e me abraçou forte. Disse que queria que eu viajasse com ele para o Texas antes de ir pra casa. Ele queria fazer uma roadtrip comigo. “Você está louco”, eu disse, rindo e sem dar muita importância.

O meu último dia em Santa Barbara chegou. Depois de uma noite olhando as estrelas com o Markus, fui para casa. Antes de ir para o aeroporto, recebi uma mensagem de adeus. No caminho para o tão famoso Los Angeles International Airport (LAX), eu só pensava numa coisa: eu me recusei a continuar vivendo uma das histórias mais lindas da minha vida com o Markus. Hoje completamos 2 anos e 8 meses sem nos vermos. A saudade dele vem vez ou outra. A saudade de sentir aquilo tudo por alguém parece que nunca vai embora.

21 thoughts on “24. Markus, o dono da camisa verde mais horrorosa

  1. Acredita se eu confessar ter chorado? haha Você se expressa muito bem, deu pra sentir que foi do fundo da alma. Sinto muito se nada acabou dando certo, mas pense que se era pra ter dado certo, tudo conspiraria a favor. Deus escreve certo por linhas tortas.

  2. Você escreve muito bem. Ficou imaginando cada detalhe que você descreve. Só estou na dúvida se tudo aqui foi algo real, ou é uma mistura do que aconteceu com o que você queria que acontecesse, isso em todos os textos. Se puder ir no meu e dizer o que acha dos meus textos eu iria agradecer.

    1. Oie, Ianne :) Acho que é sua primeira vez aqui. Bem-vinda e superobrigada pelo comentário! Quando criei o blog, decidi que não partiria pra ficção (nem se fosse metade ficção, metade realidade). Você vai perceber que os textos de pessoas do meu intercâmbio são bem mais cheios de intensidade, talvez porque o momento por lá era de muita intensidade. Vivi muitas ‘primeiras vezes’ enquanto estive fora e por isso tudo parece ser tão incrível. Os textos de pessoas aqui no Brasil são menos romantizados, até porque isso aqui já é a minha rotina. Mesmo vivendo na rotina, tento vê-la de uma maneira diferente. Beeijo!

  3. Oi, Aline! Não lembro mais ao certo como cheguei até o seu blog – minha memória tem como hobby nº 1 me trair -, mas o fato é que tenho vindo sempre aqui ver se tem post novo. Já até coloquei o link nos favoritos. Enfim, vim te elogiar pelo modo como escreve todas essas histórias de maneira natural, parecendo que vivencia novamente as situações enquanto escreve e, ao mesmo tempo, tão rica em descrição ou detalhes sutis que tornam cada história enxuta e elaborada na medida certa. Parabéns por esse talento natural haha ah, espero que eu consiga escrever mais nesses moldes, uma coisa meio crônica meio conversa. Eu também não sabia que os textos eram verídicos por inteiro, mas saber que sim, eles são, só me fez gostar mais deles!

  4. Cheguei ao seu blog atraída pelo título dele, como pessoa tímida que sou acho muito legal quando alguém decide postar suas observações sobre as pessoas, suas histórias, suas experiências com pessoas que conheceu ao longo da vida. Devo confessar que seu blog me deu um gás de viver histórias tão lindas quanto as suas, ou ao menos de conquistar a sensibilidade que você tem de transformar momentos corriqueiros em algo invejado e muito interessante de se viver. Devo confessar também que depois que li todas essas histórias verídicas tenho tratado de observar mais as pessoas ao meu redor, tentar viver de alguma maneira algo tão legal quanto as suas palavras deixam transmitir. Seu blog de uma maneira interativa me ensinou que a gente precisa ser mais comunicativo pra no futuro ter histórias para contar. E não sei se foi mesmo o seu blog, mas depois disso comecei a apreciar mais a minha presença também. Na verdade ele fortificou e me fez compreender todas as palavras de “Viva e Seja Feliz” que minha cabeça tanto queria gritar. E se você continua lendo esse humilde comentário, só quero te parabenizar pelo seu sucesso com as palavras, e que um dia eu tenha tanta intimidade com elas quanto você. Beijão ;*

    http://turnozerohora.blogspot.com.br/

  5. Aline, eu leio os teus blogs há muuito tempo e me lembro que tu já escreveste alguns posts sobre o Markus, mas de um jeito mais subjetivo que me deixaram muito curiosa (e achando a história de vocês linda). Hoje te “redescobri”, achando esse blog por acaso, e ameei ler esse post. Verdade seja dita, eu não sei como anda a tua vida hoje, mas torci e torço por vocês hahaha é muito fofo :( me desculpa a curiosidade – e intromissão – mas vocês ainda se falam?

  6. meus olhos tão cheios de lágrima. tô fazendo intercambio no méxico agora e me identifico com esse amor de verão internacional. você ainda tem o contato dele? vá conhecer a tal casa no campo :))

  7. Que história linda! você realmente escreve muito bem. Só tenho mais uma coisa a dizer: Volta pro Markus!!!

  8. Aline, já li todos os posts daqui, e sempre que tem algum novo, eu leio. E de todos os mais de 50 já postados, Aline, o Markus é o meu favorito. Não só pelo romance. Mas pela sinceridade que você passou, mas sem forçação de barra. Por como você conseguiu explicar como você se sentiu, e ainda sente com o Markus, de uma forma pessoal e abrangente. E Aline, os meus escritores favoritos são como você, que consegue mexer com os leitores tão profundamente sendo simplesmente você mesma. Parabéns, Aline!

    Luma Saggin do blog Fórmula Café

    1. Luma, muito bom ler o seu comentário, melhor ainda saber que uma das minhas histórias favoritas também tenha virado a dos leitores do blog. Espero que consiga trazer mais histórias desse tipo para a página e que você curta tanto quanto essa :) Obrigada pelas palavras! Beijos

  9. Vez ou outra venho aqui ler sobre você e o Markus!
    Juro que já li mais de 7 vezes em diferentes momentos…
    Espero que você continue vivendo essas histórias maravilhosas Aline, adoro você!

    Beijos

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