31. A mulher assustadora do 800


Acordei atrasada naquela manhã de quinta-feira. Coloquei tudo o que vi pela frente dentro da minha bolsa caramelo favorita e saí em disparada para o ponto de ônibus. Já eram 8h05 da manhã e a linha 4, que me levaria até o centro da cidade para a aula da professora Pa Vue, passaria dentro dos próximos 10 minutos. Corri o quanto minha asma deixou – pouco – e esperei, afobada, o busão do motorista John Jackson chegar. O shuffle do meu iPod havia escolhido Usher para tocar e eu me segurava para não imitar os passinhos do clipe de ‘OMG’ no meio da avenida. Distraída, nem percebi que alguém se aproximava. Quando me cutucaram, até pulinho eu dei. Olhei para trás e era ela, a mulher do 800.

A dona da casa 800 na Margo St com a Roberto Avenue era a mais assustadora da vizinhança. Era magra, baixinha e tinha os olhos puxados, brancos, sendo um maior do que outro. Usava sempre um vestido acinzentado que se parecia com aqueles de freira e nunca, nunca mesmo, deixava de lado o seu acessório favorito: um chapéu branco que, de longe, parecia de marinheiro. Também calçava sapatilhas azul marinho com meias brancas na altura do joelho. Carregava uma bolsinha pequena junto ao corpo e vivia com a mão em cima do zíper da frente. Nunca era vista durante o dia, só à noite. Eu e a minha roommate, a Chantal, costumávamos dizer que ela se parecia com o Gato de Cheshire, de ‘Alice no País das Maravilhas’ de Tim Burton.

A bizarrice da mulher do 800 também se refletia na casa dela (foto), uma das últimas da avenida. Toda noite, o quintal se transformava em uma espécie de árvore de Natal que iluminava todo o bairro e deixava poucas pessoas aproveitarem a escuridão das noites. O lugar era todo cheio de árvores e a grama era bem cuidada. No centro do jardim, havia uma fonte enorme e iluminada com uma cruz acompanhada por uma placa que dizia ‘Ó Sangue e Água que jorrastes do Coração de Jesus como fonte de Misericórdia para nós, eu confio em Vós!’. Mais tarde, descobri que a frase vinha de ‘Divina Misericórdia’, uma devoção católica. O trecho era parte de uma reza com terço.

Naquele dia, logo após me cutucar, a mulher do 800 perguntou, com a voz bem fininha: ‘O número 15 já passou?’ Em estado de choque, já que aquela era a primeira vez que ela me olhava diretamente nos olhos, respondi que sim. Ela sorriu, agradeceu e desceu a rua sentido centro a pé mesmo. Minha única reação foi tirar o celular do bolso, procurar minha roommate na lista de contatos e escrever uma mensagem para ela. ‘A mulher que parece um gato louco acaba de me cutucar para pedir informação no ponto de ônibus. Meu coração está batendo rápido demais. Acho que vou morrer’, eu disse, acrescentando meus eternos ‘hahaha’ antes de apertar o ‘enviar’.

Na noite daquela quinta, sentamos todos para jantar às 6 da tarde, como de costume. Pensei se aquela era a melhor hora para perguntar e cheguei à conclusào que sim. Na mesa com a nossa host mom, a Terri, soltei:

– O que acontece com essa mulher do 800, aquela da casa de árvore de Natal? Ela parece meio perturbada. Ela falou comigo no ponto hoje e me deixou assustada. Quase tive um treco!

Terri, que morava na rua há pelo menos 30 anos, engoliu a batata assada que comia e me olhou com aquela cara que eu já conhecia. A cara de ‘céus, Aline!’ que ela sempre fazia quando eu surgia com perguntas inusitadas e as multiplicava em questão de segundos. Respirou fundo e, querendo rir, disse:

– Então você já a conheceu? Nem sabia que você prestava tanta atenção na vizinhança.

Sim, Terri, eu a conheci. Quanto ao ‘prestar atenção na vizinhança’, digo que claro que prestava. Notei a casa dela nos meus primeiros dias de intercâmbio em Santa Barbara. Não só pelo quintal exagerado, como também pela quantidade enorme de pequenos calangos que se escondiam nas moitinhas do jardim e pulavam na minha frente toda vez que eu passava.

A Terri deixou o sorriso de lado depois que contei sobre o episódio no ponto de ônibus. Me disse que a mulher do 800 tinha passado por coisas ruins nos últimos anos. Era ‘normal’, segundo ela, e morava naquela casa com o filho. O rapaz morreu ainda muito jovem. O que se falava era que desde então, a vizinha da casa assustadora se dedicava a decorar sua casa de um jeito que, aparentemente, atrairia a presença de Jesus para curá-la, salvá-la da solidão.

Passei mais 3 meses na cidade depois daquilo e a casa 800, assim como sua dona, ainda me assustava. Saber a história de vida da mulher me ajudou a parar de julgá-la de louca. Cada um segue a vida acreditando no que lhe faz melhor.

One thought on “31. A mulher assustadora do 800

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *