114. Bruno, o poeta que quis me ensinar a “pegar homem”

Eu estava oficialmente derrotada. Desde as primeiras horas desperta, já havia reclamado de um bocado de coisas: da desidratação labial, que sempre me atingia quando eu bebia mais do que o normal, das fisgadas na cabeça, que subiam desde o cantinho do olho esquerdo e iam até a metade do crânio, da fome intensa, que eu só sentia nessas ocasiões, e, agora, sentada de frente para a praia do Pontal, no canto esquerdo do centro histórico de Paraty, eu também me queixava do sono.

A juventude já não me cai bem – disse para uma amiga, enquanto bebericava mais uma garrafa de Original sentada numa cadeira de plástico na beira da praia. A preguiça de se mover era maior do que eu, então me concentrei em observar, calada, as ondas da praia se desfazendo antes de alcançarem os pés gordinhos de uma criança sentada na faixa de areia molhada.

Eu estava na cidade há um dia, mas me sentia vivendo ali, naquelas ruazinhas cheias de paralelepípedos, há anos. Já teve essa sensação antes – a de ter feito muita coisa em poucas horas e não mais se lembrar dos detalhes de nada? Eu gostava disso, mas quase sempre ficava tão animada com dias cheios que me levava até o último 1% da minha bateria interna. Era normal acordar no dia seguinte levemente arrependida de “viver tanto”.

Era um sábado à tarde. Eu havia embarcado no Terminal Tietê na noite da quinta com destino a Paraty, para a minha primeira Festa Literária Internacional (FLIP) da cidade. Cheguei na rodoviária ainda na madrugada da sexta. Dormi por não mais que três horas e passei o dia inteiro envolvida em palestras, livros, sol gostosinho e drinks.

Na noite anterior, havia sido agraciada com um encontro com cheirinho de Santa Barbara (se você não acompanha o blog há muito tempo, leia aqui). Um amigo suíço da época do intercâmbio estava finalmente visitando o Brasil e viajou para Paraty para me encontrar. Nós não nos víamos há quase 10 anos. Levávamos por dentro todas as lembranças daqueles seis meses na Califórnia, mas já havíamos nos acostumado, inevitavelmente, a ser outras pessoas. Bastou duas doses de cachaça Gabriela para voltarmos a ser os mesmos tolos de sempre. E então bebemos e rimos juntos até tarde no restaurante que tem o melhor peixinho frito da cidade. Mesmo não sendo mais tão próximos, a hora de dizer adeus foi surpreendentemente dolorosa. De alguma forma aquele amigo indo embora significava que parte do meu passado também se distanciava.

– Agora é sua vez de me visitar na Suíça – ele disse, também triste.

– Pode me esperar! Ano que vem tô lá! – confirmei. Acho que a gente concorda que as promessas feitas enquanto estamos bêbados podem ser perdoadas, certo? Honestamente: eu não tenho a menor condição financeira de ir para a Suíça em 2020.

Voltei para casa alugada, que ficava no topo de uma viela, toda cambaleante. Nem me recordei dos dois cachorros bravos que latiam toda vez que alguém se aproximava – diferente de quando cheguei por lá que, na escuridão, senti os “bichinhos” tão perto que, em determinado momento, cheguei a escolher qual braço daria para que comessem. “Ah, se for pra pegar, pega o esquerdo, porque eu não faço nada com ele mesmo..”

Entrei na casa, escovei os dentes e tirei a lente. Coloquei o pijama e fui direto para a cama. Ali já sabia que o mundo giraria até o dia seguinte. Eu havia claramente exagerado. Não entender qual era o meu limite era uma nova condição na minha vida. Desde que passei pela cirurgia de retirada de vesícula, não sabia muito bem quando começava a ficar alegre demais. Num minuto tudo geralmente estava bem, no próximo, podia estar dando cambalhotas numa BR movimentada. Torci, então, para adormecer rápido e não sentir vontade de vomitar os drinks degustados naquela noite.

Então, agora, você entende, leitor: era por isso que eu me sentia tão mal naquele sábado à tarde.

Ele, o Bruno, surgiu do nada. Não vi o momento exato em que se aproximou. Por isso, claro, me assustei – mas dei uma risadinha interna ao notar um rapaz fazendo caretas em minha direção, a poucos passos da mesa onde eu estava. Lembrei da vinheta de abertura do “De Férias com o Ex”: um corpo praiano aparecendo do meio do mar, de repente, fazendo caras e bocas para a câmera, sabe? Não que o corpo dele fosse praiano. Mas você me entende…

O Bruno parecia encantado com alguma coisa. Sabe aquela expressão que a Stephenie Meyer, escritora de “Crepúsculo”, usava para descrever o fenômeno que acontecia com os lobos quando eles “se apaixonavam”? É “imprint” que fala, certo? Ele parecia ter tido um desses… Comigo. Sorria, apontava algo em seu braço e falava “que vibe!” Só me faltava essa, eu repetia, internamente. Que porra esse rapaz tá querendo dizer? Eu tô numa ressaca monstra, de péssimo humor, queria estar deitada em casa, e do nada esse “homi” começa com essas palhaçadas?

Vendo a minha total inabilidade de entender tamanha felicidade ao me encontrar, o Bruno resolveu, finalmente, usar mais palavras:

– Pô, maneiro! Temos a mesma tatuagem! – disse.

Em qualquer outro dia, eu demonstraria mais emoção e mais interesse. Naquele, só fui capaz mesmo de dar uma risada sem graça e dizer um “legal” que, obviamente, saiu com aqueeela vontade de viver.

Fiz a tatuagem da qual ele falava em 2015. É a palavra “aventura”, escrita em inglês, com fonte de máquina de escrever, na parte interna do braço. Fiz depois de constatar que era mesmo apaixonada por viagens e por viver histórias por aí. Apertei os olhos para enxergar a tatuagem dele. Ele sorriu.

– Maneiro! – repetiu, soando como um adolescente de 40 anos.

O Bruno tentou puxar mais papo. Perguntou a minha idade e a da minha amiga – igualmente morta de ressaca -, de onde éramos, o que fazíamos na cidade… Ora, por que, fora para participar da Festa Literária, alguém estaria na cidade naquela época, não é mesmo? O nosso novo colega hippie-surfista chegou mais perto da nossa mesa – e por um instante fiquei com medo de ele pedir para sentar-se com a gente. Era raro acontecer, mas eu não estava afim de conversar.

O rapaz contou que era poeta e que viajava o Brasil se inspirando e fazendo sua arte. Antes mesmo que pudesse respondê-lo, ele tirou de uma sacola de pano impressões em papel sulfite de suas obras e me entregou uma delas. Não me lembro o nome exato que deu ao trabalho, mas era algo como:

MANUAL DE COMO SER BEM SUCEDIDO NA PAQUERA

Puta que me pariu!

– “Esse livro meu tem o intuito de fazer a mulherada se soltar, sabe? De chegar no cremoso e falar…” – ele começou.

CHEGAR. NO. CREMOSO. E. FALAR.
CHEGAR NO CREMOSO E FALAR!!!!!!!

Eu o interrompi com uma risada sem graça. Sabe aquele momento constrangedor em que, infelizmente, você está completamente de bode da pessoa e tem que reduzir drasticamente a quantidade de interação com ela (às vezes até ficando calado!) para que ela perceba que precisa vazar? Fui eu, ali, ao receber de um boy um manual de como pegar boys.

O Bruno se despediu, sem jeito. Sabia que se falasse mais um piu, eu provavelmente o zoaria por escrever aquela desgraça de manual idiota. Eu olhei pro lado e comecei a gargalhar com a minha amiga. Depois, peguei o bloco de notas do celular para escrever sobre esse encontro divino de tatuagens. Parece que Paraty está sempre cheia de histórias boas

*Dono da ilustração maravilhosa: Max Reed

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